Isso é lá coisa que se faça?
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"O verdadeiro amor é um calafrio doce, um susto sem perigos." (Guimarães Rosa)
Imagine uma dada situação, terráqueo. A mãe de um determinado sujeito envia uma mensagem ao filho por aquele famoso aplicativo esmeralda, entretanto, o dito rebento não consegue visualizar tempestivamente, acossado por compromissos de trabalho. Quando finalmente o faz, descobre que a senhora teve um pico de pressão pela manhã, mas que já havia sido atendida por um médico e encontrava-se estável. Alarmado, ele responde logo em seguida, tentando confirmar se realmente estava tudo sob controle. Ainda inquieto, decide ir no dia seguinte à casa dos pais.
O sujeito chama no portão, contudo, não obtém retorno. Decide, então, testar a fechadura: estava destrancada. Ele entra na varanda e percorre o corredor, chama pelos pais e não há sinal algum de resposta. Ao fim do corredor, avista um corpo caído no chão.
Conseguiu visualizar as cenas, angustiado leitor? Pois foi exatamente assim, sem um ponto fora do lugar. Putzgrila. Fui tomado subitamente por aquele temor ancestral de deixar a sandália emborcada, senti-me criança outra vez. O coração batia acelerado e as pernas vacilavam… o que fazer agora, sem minha mãe? Não há palavras para descrever o quanto ela é importante para mim. "Devia ter vindo ontem mesmo", pensei, com os olhos já marejados, enquanto me aproximava, hesitante, na direção do corpo.
A medida que me aproximava, o quadro se tornava mais nítido e uma mescla de alívio e medo dominou as demais emoções, tão confusas e tumultuadas…até infantis. Não era minha mãe caída no chão. Era meu pai.
"Mãe só tem uma", diz o velho ditado… mas pai também, né? Desta feita, não me senti culpado por algum chinelo virado que, por acaso, eu tivesse deixado por aí, já que a superstição não prevê infortúnio para os pais. Contudo, o aperto no coração persistia, e eu temia continuar a caminhada e descobrir o desfecho daquela história. Fosse o que fosse, eu não queria saber. Um filme passou na minha cabeça: cenas da minha infância, ora ao lado de minha mãe, ora junto ao meu pai — momentos de bronca, de afeto, de alegria… tudo muito embaralhado, pois para mim sempre foi difícil discernir onde concluía um e começava o outro, como se eles fossem as duas metades de uma única entidade.
"Espera aí… ele está se mexendo", pensei outra vez aliviado, ao chegar mais perto. Ouvi passos atrás de mim: era minha mãe, surgindo com uma lanterna nas mãos.
— Oi, filho! — respondeu a senhora, erguendo o rosto para um beijo. "Graças a Deus a senhora está viva, mãe!".
— Oi, mãe! O que está acontecendo? Pai, tá tudo bem? — perguntei, com a voz embargada e quase em prantos.
— Toma aqui a lanterna, vê se agora você consegue… — disse ela, estendendo o objeto ao meu pai, que soltou uma risadinha. Apontou a lanterna para baixo do refrigerador e ficou fuçando com o outro braço. — É que seu pai derrubou o comprimido da pressão e está tentando pegar.
— Achei, pera aí! — disse ele, levantando-se lentamente. "Graças a Deus o senhor está vivo, pai!".
— Pô, vocês estão de sacanagem? Isso é lá coisa que se faça? — reclamei, abraçando os dois em seguida. "Viva as mães! Viva os pais!".
— O quê?
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