MENU

Fale Conosco

(22) 3512-2020

Anuncie

Contato comercial

Trabalhe conosco

Vagas disponíveis

Um espião quase perfeito

Por George dos Santos Pacheco
17/05/23 - 09:30

“Não há nada em que paire tanta sedução e maldição como num segredo.” (Soren Kierkegaard)

Jaime Bon, o agente secreto friburguense, acabara de receber sua nova missão: interceptar o chefe de uma perigosa organização criminosa que se instalara há alguns anos em Nova Friburgo sob o disfarce de uma empresa de fachada. O memorando era bem claro: “interceptar e neutralizar” – contudo, jamais havia dado cabo de nenhum inimigo, embora o duplo zero de seu código fosse sinal de que tivesse permissão para tal.

007 era alto, forte, cabelos ligeiramente crespos (penteados do lado esquerdo para o direito), treinado em defesa pessoal e combate corpo a corpo. Sempre fazia uso de um característico blazer preto – o smoking completo chamava muito a atenção na Alberto Braune – e seus deslocamentos eram, em sua maioria, realizados no Voyage 1989 cinza chumbo (modelos Aston Martin eram muito caros para tímida arrecadação da prefeitura) ou até mesmo de ônibus.

Jaime Bon era inteligente e astucioso, de olhar enigmático, sempre cercado por belas mulheres. Elegante, chamava a atenção com sua eloquente e quase protocolar apresentação: “Meu nome é Bon, Jaime Bon". Seu drink predileto? Caipirinha (mexida, não batida).

O tal chefe da quadrilha era um homem frio e calculista, um sociopata dos mais perigosos. Não havia dúvida alguma quanto a importância de encontrá-lo e que o magnífico Jaime Bon era a pessoa mais adequada para essa tarefa. Contudo, segundo o previsto no Estatuto dos Funcionários Públicos, antes de iniciar a missão, Bon precisava realizar uma bateria de exames: testes físicos, de raciocínio lógico, psicotécnicos, de trânsito, de suficiência em inglês – e até bafômetro.

Ao fim de cerca de seis meses, Bon finalmente apresentou-se à M, chefe da Divisão de Inteligência da Prefeitura com o relatório da missão, embaixo do braço. Aguardou na sala de espera por uns quarenta minutos, M era muito ocupado, despachava uma série de documentos todos os dias. Cá entre nós, foi muita sorte 007 ser atendido tão rapidamente.

– Entre, Bon. Sente-se, por favor. – disse M ao abrir a porta de seu gabinete e indicar a cadeira estofada.

– Boa tarde, M. Err... infelizmente, o meliante evadiu-se, mas eu tenho informações precisas de que ele está em Rio das Ostras. Sim, sim. Ele está em Rio das Ostras. – insistiu Bon ao sentar-se, desabotoando o blazer.

– Ótimo, Jaime. Mas não entendo. Como o deixou escapar? – perguntou o chefe, abrindo a pasta e desviando o olhar para as folhas, franzindo o cenho.

– Ah, quanto a isso, está tudo registrado aí na segunda parte do meu relatório, senhor. – explicou Bon, cruzando as pernas, e apontando o indicador na direção do documento, enquanto M folheava compenetrado as páginas do dossiê. – O aprazamento do cardiologista na rede municipal de saúde é pra lá de um mês e a máquina de eletrocardiograma está sempre quebrada – só consegui fazer o exame uns dois meses depois, diga-se de passagem. Além disso, o trânsito na Alberto Braune é horrível, o senhor sabe. Com as obras, então, fica impraticável. Vale também para a Rui Barbosa (com obra ou sem obra) e o viaduto – principalmente na hora do rush. Ninguém consegue chegar na hora certa para nada. Para piorar, não há vagas públicas suficientes para estacionar carros em nenhuma rua do centro da cidade. Nenhuma, doutor. Algumas estão com o calçamento irregular e até mesmo buracos, obrigando os condutores a diminuírem a velocidade. Ah, e os pedestres quase se atiram na frente dos carros, fora da faixa, inclusive. Em cinquenta vias observadas há pelo menos um poste com lâmpadas queimadas e em quase toda esquina há lixo descartado de maneira incorreta. Enfim, o profissional que realiza o teste físico estava de licença médica, mas só fui descobrir isso no dia do atendimento e imagine o que aconteceu. Precisei remarcar para um mês depois! Um mês, doutor! Mas nem tudo estava perdido. O professor de inglês era meu peixe, então isso foi molezinha; o teste do bafômetro eu tirei de letra, não me pergunte como. Em suma, só consegui iniciar a investigação mês passado, mas aí aquele puto já havia se extraviado, fazer o quê. Segundo minhas fontes, ele está em Rio das Ostras, mas o problema agora é que meus exames já estão todos vencidos e vou precisar refazê-los… – capitulou Bon, lenta e cadenciadamente.

– Puta que pariu, 007! Isso... isso tudo é um grande absurdo… – murmurou M, com indignação, ao receber as informações.

– Peraí, doutor! Não acabou ainda, não. Semana passada, três ônibus para Amparo quebraram num único dia. E por falar nisso, o carro do senhor está com um vazamento de óleo na junta do cabeçote e com três multas por excesso de velocidade – que a senhora sua esposa recebeu em dias alternados em radares na Friburgo–Teresópolis (um tanto distante da casa do senhor, vale frisar). Além disso, o senhor está com os triglicerídeos elevadíssimos e com esteatose hepática – mas uma dieta simples pode eliminar o problema. Ah, e antes que eu me esqueça… a sua filha está namorando aquele rapaz da academia (e grávida já há uns quatro meses)… – concluiu Bon, para desespero e perplexidade de M.

Jaime Bon, o agente secreto friburguense, recebera então sua mais nova missão: carimbar documentos e organizá-los cronologicamente em pastas, numa sala da Divisão de Inteligência em frente à Prefeitura. Ele não compreendia. Era tão inteligente, astucioso e elegante, treinado em defesa pessoal e combate corpo a corpo... Ora, com todas essas habilidades, ele era formidável, um espião quase perfeito! Porém, não havia dúvida alguma que sua maior virtude era também o seu maior defeito: Bon era catedrático em descobrir segredos que, apesar de muito relevantes, ninguém faz questão em saber. Ainda pior que isso, o nosso magnífico Jaime Bon, como agente secreto, era um excelente malsim do óbvio, arauto do manifesto e evidente. E isso... isso qualquer um pode fazer.


O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.

TV Multiplix
TV Multiplix Comunicado de manutenção TV Multiplix Comunicado de manutenção
A TV Multiplix conta com conteúdos exclusivos sobre o interior do estado do Rio de Janeiro. São filmes, séries, reportagens, programas e muito mais, para assistir quando e onde quiser.