MENU

Fale Conosco

(22) 3512-2020

Anuncie

Contato comercial

Trabalhe conosco

Vagas disponíveis

LGBTfobia: “Eu estava em estado de choque, desesperado, vendo sangue para todo lado”

O relato de um jovem gay de Nova Friburgo, vítima de agressão LGBTfóbica, a luta de pessoas LGBT+ por igualdade de direitos e as dificuldades para serem tratadas como cidadãs

Por Bernardo Fonseca
28/06/21 - 12:00
Violência LGBTfóbica: “Eu estava em estado de choque, desesperado, vendo sangue para todo lado” LGBTfobia é crime no Brasil desde 2019, mas medida ainda não é suficiente para coibir violência contra a população LGBT+ | Foto: Banco de Imagem

O ano era 2017. O fotógrafo Felipe Saldanha, jovem gay, à época com 22 anos, comemorava o aniversário de uma amiga em um bar de Nova Friburgo, Região Serrana do Rio, quando por volta das 22h30 pagou a conta para ir embora, já que dependia de pegar o último ônibus para o bairro onde morava. Foi então que passou por um homem, vizinho à mesa onde era celebrado o aniversário, em quem acabou esbarrando. Dinâmica não muito incomum para quem já frequentou um bar cheio na vida. A surpresa veio com a discussão que se seguiu. “Ele queria que eu saísse de lá”, conta Felipe, que embora estivesse prestes a ir para casa, diante da situação inusitada contra-argumentou, dizendo que o rapaz não tinha o direito de pedir que ele saísse do local. “Foi quando ele me deu uma cabeçada no nariz e depois veio com o copo que estava na mão e quebrou no meu rosto”, relata.

O homem tentou prosseguir com a agressão. Um amigo de Felipe acabou levando um soco. O agressor só parou quando foi contido por outras pessoas. “Eu estava em estado de choque, desesperado, vendo sangue para todo lado”, conta. Felipe foi auxiliado pelos amigos, que prontamente chamaram uma ambulância. Em seguida, foi levado para o hospital e precisou ter o rosto costurado.

Engana-se quem pensa que situações como essa são raras. Acontecem todos os dias em inúmeras cidades do Brasil. E as agressões físicas, quando não chegam à morte, são só a ponta do iceberg da LGBTfobia, que pode ocorrer por meio de ofensas verbais, discriminações, punições, violência psicológica, moral ou patrimonial, sempre motivadas pela orientação sexual ou identidade de gênero - real ou suposta - da vítima. E é para conscientizar sobre essas e outras situações vividas por essas pessoas que é celebrado neste 28 de junho o Dia Internacional do Orgulho LGBT+.

Direitos não são inteiramente efetivos na prática

Entre os anos 2000 e 2020, foram 5.046 mortes motivadas por violência LGBTfóbica no Brasil, de acordo com dados compilados pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), que atua há 41 anos na defesa dessa população. Embora significativo, o número é subestimado, como reconhece a própria ONG em relatório publicado no mês de maio deste ano, já que muitas vezes a identidade de gênero ou a orientação sexual das vítimas é ignorada, devido às lacunas dos registros policiais e até mesmo ao desinteresse em promover a cidadania dessas pessoas, entre outros fatores.

No Brasil, não há uma lei nacional que reconheça como crime a LGBTfobia, mas, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou o preconceito e a discriminação à população LGBT+ ao crime de racismo. A decisão é celebrada pela comunidade como mais um direito conquistado, mas ainda é insuficiente para coibir casos como o de Felipe, que seguem ocorrendo.

Entre os anos 2000 e 2020, foram 5.046 mortes motivadas por violência LGBTfóbica no Brasil, de acordo com dados compilados pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB)Entre os anos 2000 e 2020, foram 5.046 mortes motivadas por violência LGBTfóbica no Brasil, de acordo com dados compilados pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB) | Foto: Banco de Imagem

Para a advogada Fátima Guerreiro, autora do livro “O Supremo Tribunal Federal e a Proatividade: um impasse para a comunidade LGBTI+”, baseado em sua tese de mestrado sobre a precariedade do direito à união estável, garantido pelo STF em 2011, falta legislação discutida e aprovada pelo Congresso Nacional que fundamente e dê mais segurança jurídica às conquistas dessa parcela da população até aqui, seja em relação às uniões homoafetivas seja em relação à criminalização da LGBTfobia.

“Essas decisões geraram direitos, mas esses direitos não estão garantidos em lei e podem ser transformados em decisões mais conservadoras”, argumenta. Há também a dificuldade na aplicação dessas regras na prática. “Quando você fala em crime de homofobia, por exemplo, a delegacia coloca como presume-se que seja. O Estado ainda não preparou as forças policiais para lidar com essas pessoas”, diz.

Relatório da ONG All Out Brasil publicado neste mês de junho corrobora a fala de Fátima, tendo identificado resistência do Estado brasileiro para reconhecer crimes de ódio contra pessoas LGBT+. O levantamento também apontou que muitas denúncias só são processadas pelas instituições apenas quando recebem visibilidade midiática.

Puxadinho de legislação

O advogado Carlos Miranda Júnior explica que muitas leis aprovadas pelo Legislativo e promulgadas são específicas para outros grupos, como jovens, idosos e negros, e acabaram sendo estendidas à população LGBT+ por meio de decisões judiciais, como uma espécie de puxadinho da legislação, e por isso acabam sendo falhas quando uma pessoa LGBT+ precisa.

População LGBT+ do Brasil conquistou inúmeros direitos na década passada, mas aplicação plena na prática ainda é desafioPopulação LGBT+ do Brasil conquistou inúmeros direitos na década passada, mas aplicação plena na prática ainda é desafio | Foto: Banco de Imagem

“Muito embora os cartórios e delegacias não possam deixar de aplicar os atendimentos para realizar o casamento ou instaurar um inquérito para apurar o crime de homofobia, muitos profissionais atendem de forma equivocada, seja por relutância em aceitar aquele direito seja por falta de conhecimento técnico”, destaca Carlos. Nestes casos, a recomendação é procurar um advogado ou a Defensoria Pública.

Como principais garantias conquistadas pelos LGBT+, além do reconhecimento da união estável de 2011 que possibilitou também a pensão por morte, Carlos cita a permissão de adoção de crianças por casais homoafetivos; o direito ao procedimento cirúrgico de redesignação sexual através do Sistema Único de Saúde (SUS), que vale desde 2010; o direito à alteração e inclusão do nome social para pessoas transexuais e travestis nos documentos pessoais, independente da realização da cirurgia; a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que desde 2013 obriga que todos os cartórios realizem o casamento civil homoafetivo; a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais, travestis e demais mulheres LGBT+ para combater a violência doméstica; e, por último, a criminalização da LGBTfobia, de 2019.

Em caso de recusa no cumprimento de algum dos direitos descritos na reportagem, além de poder recorrer à Defensoria Pública, é possível ligar para o Disque Direitos Humanos para denunciar, através do Disque 100, de forma gratuita, 24 horas por dia.

LGBTfobia é rotineira para quem vive

A agressão sofrida por Felipe Saldanha no bar de Nova Friburgo foi a primeira violência física vivenciada por ser quem ele é, mas o fotógrafo friburguense garante que não foi a primeira vez que passou por preconceito. “Primeiro caso de agressão que sofri, mas homofobia a gente sofre a vida inteira, dentro de casa, na família, na escola, no trabalho, e às vezes são palavras que machucam tanto quanto uma agressão, dependendo de quem venha e da forma que vem”, relata.

Muitas vezes, os traumas causados por uma agressão ficam eternizados na vida de quem sofre. “Por muito tempo, fiquei com vergonha de sair para trabalhar por conta das cicatrizes do meu rosto, e me sentia desconfortável” conta. “As pessoas são curiosas e às vezes insensíveis. Me perguntavam sobre o ocorrido sem pensar nos gatilhos que poderiam desencadear dentro de mim. Sempre que alguém tocava no assunto, eu era obrigado a reviver aquele momento”, revela Felipe.

Foram meses muito sombrios para mim. Eu tinha medo de sair de meu quarto, foram noites tendo pesadelos. Minha família ficava assustada comigo, eu acordava gritando, chorando, desesperado. Por mais que muita gente estivesse lá pra ajudar, o medo corroía, tomava conta de mim.

“Na época, eu não tinha forças e nem psicólogo pra ir a fundo, mas com a ajuda de algumas pessoas, nós fizemos um boletim de ocorrência, junto com outro amigo que também havia sido agredido, mas não deu em nada. A justiça é falha e, na maioria das vezes, só funciona pra quem tem o poder nas mãos”, desabafa.

Importância do apoio da família

Por mais que ainda não se sinta seguro para viver sua vida plenamente, para Felipe, a família teve papel decisivo na recuperação nos meses e anos que se seguiram à agressão. “Eu me considero uma pessoa sortuda por ter pessoas que me amam perto de mim. Graças a Deus passou, eu estou bem, eu ainda tenho marcas no meu rosto, e ainda tenho marcas dentro de mim que vão ficar para sempre, mas eu sempre vou lembrar do amor que essas pessoas tiveram comigo”.

A advogada Fátima Guerreiro ressalta a importância de a família abraçar a luta por respeito e igualdade, a fim de pressionar as instituições públicas a fazerem valer os direitos garantidos aos LGBT+. “É fundamental que a família assuma essa luta, assim como os movimentos sociais”, explica.

Carlos Miranda Júnior reconhece que as conquistas garantidas pelo Judiciário à população LGBT+ podem sofrer algumas variações ao longo dos anos, mas não crê nesta possibilidade. “Acredito que isso não vai ocorrer. Mesmo com o governo atual, que é declaradamente contrário a todas as causas LGBT+, porque estamos falando de trânsito em julgado, direito adquirido e retrocesso”, afirma.

“Muita gente foi contra a criminalização da LGBTfobia, pois estaria dando muito mais direitos aos gays do que aos héteros. Mas é preciso levar em consideração que um heterossexual não é agredido na rua em face de sua sexualidade. E não adianta ter esse argumento de que todos somos iguais perante à lei, porque não somos iguais perante à Justiça”, complementa Carlos sobre a importância de o Estado garantir amparo às minorias.

Ensaio fotográfico com a mulher trans e influenciadora digital Renata celebra o Mês do Orgulho LGBT+, feito em Nova Friburgo pelo fotógrafo Felipe Saldanha, com maquiagem de Luiza Zbinden.Ensaio fotográfico com a mulher trans e influenciadora digital Renata celebra o Mês do Orgulho LGBT+, feito em Nova Friburgo pelo fotógrafo Felipe Saldanha, com maquiagem de Luiza Zbinden. | Foto: Felipe Saldanha/WIS Gallery

“A pessoa pode ser o que quiser, e é um direito garantido pela Constituição. Direito à vida, aos prazeres, à individualidade. Não cabe ao Estado julgar”, ressalta Fátima Guerreiro. “Os movimentos sociais, a sociedade civil organizada, e sobretudo a família, precisam lutar por essas garantias”, destaca.

Por fim, questionado sobre qual seria o maior desafio para quem é LGBT+, o fotógrafo Felipe Saldanha lembra de uma parcela dessa população que muitas vezes é invisibilizada e é categórico na resposta. “Homens e mulheres trans e travestis, que são as pessoas que mais morrem dentro da nossa comunidade, por conta do ódio, da ignorância, da falta de informação. Então, eu acho que o maior desafio hoje, no momento que a gente está, é não ser morto”.

Renata é mulher trans e influenciadora digital. Foi modelo para ensaio fotográfico em celebração ao Mês do Orgulho LGBT+Renata é mulher trans e influenciadora digital. Foi modelo para ensaio fotográfico em celebração ao Mês do Orgulho LGBT+ | Foto: Felipe Saldanha/WIS Gallery


É proibida a reprodução total ou parcial dos conteúdos do Portal Multiplix, por qualquer meio, salvo prévia autorização por escrito.
TV Multiplix
TV Multiplix Comunicado de manutenção TV Multiplix Comunicado de manutenção
A TV Multiplix conta com conteúdos exclusivos sobre o interior do estado do Rio de Janeiro. São filmes, séries, reportagens, programas e muito mais, para assistir quando e onde quiser.