Aconteceu de novo
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"É impossível para um homem ser enganado por outra pessoa que não seja ele próprio." (Ralph Waldo Emerson)
Eu até podia mentir, dizer que isso jamais aconteceu comigo, coisa e tal, mas não sou homem disso. Definitivamente, não é do meu feitio e quem acompanha a coluna sabe muito bem que essa é a verdade. Além disso, fica feio pra caramba, adjetivo mais que suficiente para não ter que usar superlativos menos ortodoxos.
O fato é que tenho um medo terrível de ser confundido por aí, mas aconteceu de novo. Já trocaram meu nome, já acreditaram que eu era outro escritor (de fama nacional, olha só), mas imagine, meu senhor, ser confundido com um mau caráter qualquer, um cafajeste, caloteiro, um tratante desses por aí? Deus me livre e guarde, mas quem não corre esse risco?
A propósito, existe, inclusive, a figura do doppelganger (que significa "duplo ambulante"), um termo cunhado na cultura alemã, uma espécie de sósia sobrenatural de uma pessoa viva ou, ainda, um gêmeo do mal, representado diversas vezes na literatura e no cinema, como na adaptação do livro "O Homem Duplicado", de José Saramago, com Jake Gyllenhaal nos papéis principais. Parece-lhe demasiado fantástico? Pois há relatos de observação de uma "cópia" de uma pessoa, sendo o mais famoso o caso de Goethe, em sua autobiografia "Memórias: Poesia e Verdade", em que o autor narra o encontro com seu duplo, ao se cruzarem a cavalo.
Digressões à parte, voltemos ao que interessa. Aconteceu de novo, terráqueo. Quero dizer, não necessariamente. Vinha eu caminhando calmo e tranquilamente pela bucólica e aprazível Alberto Braune, outrora Rua do Senado e também General Argolo, aquela que assistiu ao resfolegar do trem, às tropas que marchavam ao som de hinos militares, a protestos embalados por discursos eloquentes e palavras de ordem. Sim, sim: essa mesma. Quem diria que a polêmica e pitoresca avenida Alberto Braune também seria palco de episódio tão inusitado? Eu jamais apostaria.
Onde eu estava mesmo? Ah, bem lembrado, atencioso leitor. Eu estava na Alberto Braune, caminhando tranquilamente após sair do trabalho. Quando reduzi a velocidade dos passos, distraído com uma aglomeração que se formava repentinamente, alguém tocou em meu ombro.
— Ei, irmão! — disse alguém, ao se aproximar. Parei de caminhar e me virei para trás.
— Ahn? — murmurei entredentes. Eu nunca tinha visto o tal na vida, mas conheço tanta gente que é bem capaz de ser um colega de trabalho que não vejo há muito tempo ou, quem sabe, um ex-aluno, com os traços já amadurecidos.
— Desculpe, irmão! — continuou ele, um tanto sem jeito. Agora nós éramos o embargo no trânsito das pessoas na calçada, como uma pequena ilhota formada no fluxo de um rio.
— Pois não? — perguntei, dando prosseguimento àquela conversa incidental. Franzi os olhos e observei, observei… tentando encontrar no sujeito alguma coisa que me lembrasse de onde ele me conhecia. Eu até podia mentir, dizer que isso jamais aconteceu comigo, coisa e tal, mas não sou homem disso. Definitivamente, não é do meu feitio e quem acompanha a coluna sabe muito bem que essa é a verdade.
— Desculpe! É que… cara, você parece muito com meu irmão, que já faleceu — respondeu ele, baixando o olhar tristemente. Puta que pariu…
— Opa, sinto muito — comentei, pesaroso, sinceramente compungido com tal situação. Puxa vida, terráqueo. Que merda.
— Obrigado — disse ele, com os lábios trêmulos, e passou as costas da mão no nariz. Ergueu novamente o olhar e continuou: — Desculpe, eu fico sem jeito, mas é que eu tenho muitas saudades dele. Posso te dar um abraço? — perguntou, um tanto encabulado. Eu não sabia o que responder (mas respondi mesmo assim).
— Err, sim. Sim, amigo! — consenti, e o rapaz me abraçou por uns cinco segundos, culminando com um tapinha nas costas. Que situação, emocionado leitor!
— Obrigado! — disse ele ao se afastar, com os olhos marejados. — Deus te abençoe! — concluiu, por fim, unindo as mãos como se estivesse em oração, sumindo na multidão. Sumiu, escafedeu-se.
— Por nada! Vai com Deus. — afirmei, sinceramente e segui meu caminho, sorrindo desconcertado. Que situação! Ora, eu jamais vou me negar a melhorar o dia de alguém, quanto mais assim.
Comovente, meu senhor, muito comovente. Já erraram meu nome, já se convenceram de que eu era outro escritor, funcionário de loja e até porteiro de prédio. Tudo bem, tudo bem. Pelo menos não me confundiram com um mau caráter qualquer, um caloteiro ou batedor de carteiras. Peraí... minha carteira! Onde é que… minha carteira! Polícia! Minha carteira!
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