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A parte mais importante

Por George dos Santos Pacheco
17/12/25 - 10:06

"A verdadeira arte da memória é a arte da atenção" (Samuel Johnson)

— Amor? — sussurrou Dona Maria, sentada ao meu lado.

— Hum… — respondi, no mesmo tom de voz. Sentados no banco de madeira, assistíamos à Missa do Galo; os garotos nos ladeavam. A igreja estava repleta de fiéis que recebiam as bênçãos que antecedem as reuniões familiares, os amigos-secretos, as trocas de presentes e as eternas reclamações sobre as passas no arroz. Eram cerca de dez e vinte e cinco da noite.

— Você está dormindo? — perguntou ela, num tom de censura. A confraternização na casa dos parentes, compadres e cia. ltda. começara algumas horas antes, como aquecimento para a fatídica ceia natalina. Rabanadas, quitutes e, claro, uma taça ou outra de vinho doce brasileiro já haviam sido devidamente saboreados. E todo mundo sabe o que acontece quando bebo vinho.

— Não. Claro que não. — neguei, solenemente. Padre Jefferson parecia fazer de propósito: o sermão, após a leitura do Santo Evangelho, era pausado, lento, cadenciado, num tom de voz que quase embalava. Que vergonha! As pessoas devem ter ouvido o pito sussurrado, parecido com uma prece bem entoada.

— Está dormindo, sim. Chegou a roncar! — tornou a acusar, fechando o semblante. Ah, caramba… fora só um cochilo, coisa rápida; mas não deixava de ser uma falta de respeito, digna de confessionário. O que eu faço agora?

— Não estou, não. Eu… só fechei os olhos um instantinho. — justifiquei-me, com uma desculpa esfarrapada, diga-se de passagem, bem sem-vergonha. Se eu tivesse dito que estava rezando, teria soado melhor — e mais convincente. Sorri, sem graça. Eu não mentiria para Dona Maria. Não. Claro que não. Não para Dona Maria; não dentro de uma igreja; não numa crônica de Natal. Dona Maria balançou a cabeça e estalou os lábios num sorriso de mofa, virou-se para frente e voltou a prestar atenção ao sermão do padre. Ora, quem nunca? Quem nunca cochilou no ônibus, voltando do trabalho? Tudo bem, o senhor tem razão, sonolento leitor. Eu não estava voltando do serviço, nem dentro de um coletivo lotado balançando de um lado para o outro feito colo de mãe. Eu estava na igreja. Mea culpa.

"Fazei, Senhor, que acreditemos no poder do vosso amor, tão diverso do poder do mundo; fazei que, à semelhança de Maria, José, os pastores e os magos, nos unamos ao vosso redor para Vos adorar", dizia Padre Jefferson, num tom eloquente e comovente, por trás dos óculos de aros grossos. O que ele disse, porém, naqueles segundos de madorna (ou seriam minutos?), jamais saberei. Talvez fosse a parte mais importante da homilia — mas eu, respeitável terráqueo, não posso saber.

A verdade é que a gente se permite adormecer enquanto coisas sérias acontecem — na família, no trabalho, na sociedade — e isso é tão grave quanto cochilar na missa; um peso para se carregar na consciência até depois do Natal.

Benção final e o tradicional autoconvite do padre para cear na casa de alguém — os fiéis riram; todo ano era a mesma história. Na saída, caminhamos pelo corredor da igreja cantando "Noite Feliz":

"Dorme em paz, ó Jesus!

Dooorme em paz, ó Jesus!"

Dona Maria me olhou e riu; os garotos perceberam a brincadeira, mas só entenderam a graça durante a ceia, quase cuspindo a Coca-Cola de tanto gargalhar.

A mesa estava farta de frutas; havia nozes, pernil assado, empadão, maionese e inclusive o Chester — aquela ave mitológica que só aparece no Natal. As conversas e piadas giraram em torno de política, futebol e até de um tio que cochilara durante a Missa do Galo. "Você não tem vergonha?", perguntou Dona Maria, rindo de mim. Claro que tenho! Ofereceram-me vinho, mas recusei educadamente. Vai que eu perco a parte mais importante?


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