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Se essa rua fosse minha

Por George dos Santos Pacheco
16/02/22 - 13:26

“A minha consciência tem milhares de vozes, e cada voz traz-me milhares de histórias. E de cada história sou o vilão condenado.” (William Shakespeare)

Segundo a lenda, na antiga Pérsia, o Rei Shariar descobriu ter sido traído pela esposa, que tinha um servo como amante. Enfurecido, o rei mandou matar os dois, decidindo todas as noites, casar-se com uma nova mulher e, na manhã seguinte, ordenar sua execução, para não mais ser traído. E dessa maneira foi por três anos, até que se casou com Sherazade, que tinha um plano para acabar com a barbaridade. Noite após noite ela contava uma história ao rei que, ávido pelas tramas cada vez mais elaboradas, queria sempre mais. Ao fim e ao cabo, Shariar esqueceu-se da sentença e desistiu de matar Sherazade.

Que poder esse, o da Literatura! Ora, Sherazade contava histórias para não morrer. Aliás, para não morrer não, vamos melhorar isso. Ela contava histórias para viver. Foi pensando nisso, enquanto voltava para casa depois do trabalho, que cheguei à conclusão de que não só os seres humanos contam histórias, mas tudo aquilo que vive. Tudo. E quando eu digo “vive”, encaro a palavra em sua mais abrangente acepção. Tudo vive, terráqueo. Tudo conta uma história. Pessoas, livros, muros, fotografias, as folhas que o outono leva ao chão… ruas. Opa, espera aí.

Ruas? E se as ruas de Nova Friburgo fossem livros? Shariar banquetear-se-ia!

A Alberto Braune seria Dom Casmurro, a artéria principal, a espinha dorsal, a obra prima. Não dá pra falar de Friburgo sem aludir a avenida, como não há como falar de literatura sem mencionar o trabalho de Machado de Assis. Foi ali por onde passou o trem, onde fora sua estação (e hoje a Prefeitura Municipal!), a antiga rodoviária, a Casa de Madame Sant’Anna, onde foi e não foi o Carnaval, o Corpus Christie... É famosa, importante, e curiosamente, não unânime. A verdadeira natureza de seus personagens talvez seja um mistério insolúvel e um dilema para seus leitores de hoje e para os que hão de vir.

As transversais do nosso digníssimo logradouro são os volumes das coleções Para gosta de ler e Vaga-lume, que incentivaram e influenciaram muitas crianças e jovens ao hábito da leitura. Destaque, porém para a rua Comandante Ribeiro de Barros. Assim como ela, a rua José Tessarolo dos Santos e a Monsenhor José Antônio Teixeira são conhecidas por seus antigos nomes, rua do Arco, rua da Baronesa, e São João. Por isso a rua do Arco é a nossa Reinações de Narizinho, livro que foi o propulsor da série Sítio do Pica-pau Amarelo, obra que figurou o imaginário infantil por tanto tempo e que passou a ser analisada de maneira anacrônica – mas que deveria ser considerada pelo contexto de sua época, assim como as ruas em lide.

A rua Portugal talvez seja Dona flor e seus dois maridos. Os personagens são os moradores, divididos entre dois amores: o sossego, durante a semana, de uma das ruas centrais da cidade, em que não há inclusive o trânsito de carros; e a euforia dos fins de semana e carnavais. Atualmente, somente uma rua faz frente a esta: a Monte Líbano. E aqui vamos de Jorge Amado novamente. A rua construída no final da década de 1920 (para o que foi necessária a demolição do prédio que abrigava a cadeia municipal) seria A morte e a morte de Quincas Berro d’Água. A via pública é como o protagonista Joaquim Soares da Cunha, o Quincas, respeitável cidadão casado e com filhos, que leva uma vida pacata de funcionário público, mas que certo dia, decide mudar seu destino, abandonando a família para entregar-se aos vícios mundanos. Seus familiares até pretendem esquecer a vida de pândega e resgatar sua memória respeitável, mas os amigos de bebedeiras sempre arrastam seu corpo para uma noite de farra.

As mãos da Praça Getúlio Vargas, tão polêmicas e movimentadas, seriam A vida como ela é, no sentido centro, e A cabra vadia, no sentido Estação Livre, ambos de Nelson Rodrigues. O primeiro foi um conjunto de crônicas escritas entre 1950 e 1961, intitulado com o nome da coluna diária do escritor no jornal Última Hora, cujas tramas giravam em torno da moral e costumes. Já a segunda foi uma seleção feita pelo próprio Rodrigues de textos publicados no jornal O Globo, marcados por suas opiniões radicais, pelo teor político, e as ácidas e divertidas frases. A Praça Getúlio Vargas foi e é palco de manifestações e não é de hoje que dá o que falar – assim como a obra do magnífico Autor Maldito.

Falando em praça, a rotatória da Praça Marcílio Dias é O Pacto: cheia de voltas, reviravoltas, saídas e possibilidades. Há nela também dois sentidos, dois olhares, pontos de vista, personagens marcantes e segundas chances. A Marcílio Dias, outrora Paissandu e Pelourinho, dialoga com a sociedade contemporânea atual, abrindo margem para reflexões sobre o que é, o que poderia ter sido, e o que poderá ser.

Nessa mesma toada, o Viaduto Geremias de Mattos Fontes seria, novamente, uma justa homenagem ao Bruxo do Cosme Velho, encarnando Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra é marcada pelo tom cáustico e pela inovação temática, além de ser considerada o marco do Realismo no Brasil, antecipando e precedendo uma série de elementos que só seriam ampliados anos mais tarde. De igual maneira, o viaduto inaugurou uma nova era na mobilidade urbana na cidade, sendo impossível imaginar Nova Friburgo sem essa importante via de acesso. Literariamente falando, quem trafega pela via experimenta uma espécie de catarse no ir e vir de flashbacks, sentindo a saudade brotar dos olhos de maneira tímida, mas sincera.

Eu bem sei, literaríssimo terráqueo, que talvez eu tenha sido injusto em não citar outras tantas avenidas, ruas, travessas e esquinas que, assim como muitos livros, marcaram a vida de muitas pessoas. Tudo conta uma história, afinal. Entretanto, Friburgo é uma biblioteca inteira e mil e uma noites não seriam suficientes. “Já é de manhã, meu senhor!” e assim, fica isto para uma próxima vez.


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