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O processo

Por George dos Santos Pacheco
04/11/20 - 10:29

Naquele dia, precisei ir ao centro da cidade com a família. Era meados da tarde, início de mês e, talvez por isso, mesmo em meio a esta situação (pra você que aterrissou aqui na Terra por agora, vivemos uma pseudoquarentena por conta de uma pandemia de coronavírus, tá?), havia bastante gente por ali. Para não desembarcarmos todos e ficar zanzando pela calçada, escolhemos que seria melhor minha esposa resolver o que fosse preciso, enquanto eu e as crianças aguardássemos no carro. Por um acaso do destino (sorte ou alinhamento de planetas), consegui uma vaga para estacionar sem precisar pagar – e quem mora nos centros urbanos sabe muito bem que isso não é uma espécie de hipérbole para chamar a atenção numa crônica.

Pois bem, a vaga ficava em frente a uma obra recente. No terreno, à beira do passeio, uma cerejeira, terminando de perder suas belas e brevíssimas flores. A natureza é incrível. No resto do ano a árvore é bem feinha, mas no inverno, por um curto período de tempo, fica carregada de flores. O tronco se dividia em dois, quase na base, mas um deles seguia onde estava sendo erguido um muro, e obviamente foi necessário cortá-lo. “Quanta insensatez!”, devem ter pensando todos que passaram por ali. Eu também pensei isso, de imediato. Logo uma cerejeira? Talvez se tivesse acontecido com uma ameixeira ou qualquer outra árvore “menos nobre", ninguém se incomodaria. Deixei meu olhar se perder no infinito, a mão apoiando o queixo... Ora, que mal há, na verdade, nisso tudo? É impossível avançar se permanecermos olhando para trás.

Vejam, bem, caríssimos leitores. Quando plantaram a cerejeira, ninguém pensou que haveria uma obra, um muro, ou qualquer coisa que pudesse lhe fazer mal. Muito pelo contrário! Devem ter imaginado que o que surgisse perto da bonitinha e encantadora árvore ia ter a estética valorizada. Concordo (e quem não concordaria?). Mas veio o muro e ele se tornou mais importante. Fazer o quê? Talvez, se racional fosse, a dita cuja não teria entendido nada quando afrontosamente lhe amputaram um dos membros, e questionaria, é claro: “Por que, meu Deus? Por quê? O que fiz de errado?”. É evidente que não foi nada que ela tenha feito, afinal de contas, ela apenas foi cerejeira. Não há nada errado em questionar, terráqueos, mas muitas coisas acontecem nesta vida sem que tenhamos responsabilidade sobre elas, e precisamos ter maturidade suficiente para entender isso. Acontecem. Simples assim.

Mais simples ainda é que, por mais que não tenhamos responsabilidade nem controle sobre o que nos acontece (a exemplo do que aconteceu com a pobre cerejeira), não quer dizer que não haja um propósito. Nada é por acaso, cara pálida. Quer você acredite, ou não. Vai fazer diferença, no que aconteceu, compreender isso? Sinto desapontá-los, mas não vai não. Mas vai fazer muita diferença no que for acontecer daí pra frente – e na maioria das vezes a gente só percebe isso muito tempo depois. É como se tudo fizesse parte de um grande processo, em que a árvore, o muro e a pessoas estão envolvidos. Tudo está conectado, e o passado é prólogo, como bem disse Shakespeare (mas bem que poderia ter sido Buda ou Raul Seixas).

Para ser sincero, eu não pensei nisso tudo enquanto brincava de adedanha com meus filhos no carro. A ficha só foi cair quando passei pé, outro dia, pela mesma calçada. A natureza é incrível, terráqueos. A amorável cerejeira estava, agora, cheia de brotos, na mesma base que viu um de seus grandes galhos se perder, por um acaso do destino (sorte ou alinhamento de planetas). A árvore, que não era racional nem nada, viveu o luto necessário e seguiu em frente (como tinha de ser), pugnando como se nada houvesse acontecido. Sua perda deu-lhe ainda mais força: ela usou o que lhe fizeram como combustível para a mudança, a renovação. E quem sabe ela não vai ficar mais bonita depois disso? Quem sabe?

Eu vos digo: outros que passarem por ali, em qualquer futuro distante, quando olharem para a árvore e a virem com todos os galhos novamente, nem vão se dar conta de que houve outro ali (nem mesmo que houve uma crônica inteira só pra falar disso). Vão apenas admirar aquela beleza efêmera e peculiar, o olhar se perdendo no infinito, as mãos apoiando os queixos. A natureza é incrível. Simples assim.


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