A última chance
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"O sábado é uma ilusão." (Nelson Rodrigues)
— Querida, cheguei! — exclamou o velho de barbas longas ao empurrar a pesada porta de madeira. — Amor? — continuou ele, não recebendo nada em resposta.
Retirou o casaco e o gorro, pendurou-os no cabideiro e sentou-se em um pequeno banco para descalçar as botas de couro. Ergueu-se outra vez, espreguiçou-se longamente, coçou a barba e passou a mão pelos cabelos, alisando os fios ralos para trás.
— Querida? — chamou ele mais uma vez, caminhando de meia pelos corredores.
À medida que caminhava, o som de vozes distantes tornava-se mais nítido. Estacou ao umbral, observando a mulher de costas, quase quarenta anos mais jovem que ele. Preparava alguma coisa sobre a pia; era alta e esguia, com o corpo bem delineado, os cabelos cuidadosamente presos num coque. O velho sorriu. Aproximou-se sorrateiramente e a agarrou por trás, roçando-a de maneira libidinosa.
— Olá, gostosa! — disse ele, fungando em seu cangote. — Adoro quando se veste assim...
— Chegou cedo este ano, hein? — respondeu ela, contorcendo-se satisfeita pelo abraço atrevido. — Desculpe, nem percebi você chegar... Estava ouvindo um podcast!
— Este ano, terceirizei alguns entregadores. Ah, preciso de uma cerveja! — explicou ele, afastando-se e abrindo a geladeira. A vantagem desse ramo era ter acesso a cervejas de vários países. Correu o dedo pelas garrafas até encontrar uma brasileira; disseram que era boa.
— Chegou uma carta para você... — anunciou ela, pausando o programa de streaming.
— Uma carta? Nem pensar, já estou de férias! — comentou ele, abrindo a cerveja e atirando a tampa longe. Virou dois grandes goles e limpou os lábios com as costas da mão.
— Meu amor, e se for um retardatário? Você sabe como está o serviço dos correios nos países em desenvolvimento... — acrescentou a mulher, servindo a massa nas forminhas.
— Shh... não fala assim, não, meu bem. Eles se ofendem. — afirmou ele, encostando a lombar na pia e dando outra golada na bebida.
— Amor, é só uma carta... — argumentou ela, colocando o tabuleiro no forno.
— Ah, tá bom... — assentiu o velho, contrariado, revirando os olhos. A mulher pegou a carta sobre a mesa e a entregou a ele, exatamente no momento em que seu celular tocou e vibrou sobre o tampo de madeira.
— É mamãe... — disse ela, ao pegar o aparelho e conferir a tela.
— Cobra venenosa... — murmurou o velho, fazendo uma careta de desgosto. Sua jovem e bela esposa deu-lhe um tapa suave no ombro como reprimenda, quando ele se pôs em marcha em direção à sala, segurando a tal carta em uma mão e a cerveja na outra.
"Oi, mãe! Tudo bem?", disse a mulher, colando o celular no ouvido esquerdo.
O homem sentou-se no sofá de tecido vermelho, esticou os pés na mesinha de centro e bebeu mais cerveja, antes de apoiar a garrafa no chão. Suspirou. Ele lia cartas por quase seis meses durante o ano e isso já estava dando no saco. Hum... poderia terceirizar isso também.
Quanto mais se distraía com o envelope em mãos, mais as vozes ao fundo se distanciavam. "Ah, está tudo bem. Ele acabou de chegar de viagem...", disse a mulher, ainda na cozinha. "Jararaca!", pensou ele, ao lembrar da sogra do outro lado da linha. Apertou os olhos, mirando o envelope, conferindo o remetente. Suspirou novamente e rasgou a lateral do papel, sacando o conteúdo e desdobrando-o à sua frente.
"Querido Papai Noel,
Escrevo estas mal traçadas linhas para tratar de um assunto de extrema importância. Para nós dois, que fique claro, desde já.
Pois bem, chega de enrolação e vamos direto ao ponto.
Ainda bem garoto, percebi que tudo o que pedia no Natal não é atendido. Se eu quisesse uma bicicleta, eu ganhava uma bola; se eu pedisse um videogame, ganhava um dominó; um tabuleiro de xadrez, recebia um tabuleiro de damas.
Velho filho da puta!
Tornei-me chacota para os meus amigos. E tudo por culpa de quem? Sua!
Mesmo assim, continuei acreditando em você. Ano após ano, a mesma coisa. Eu era o garoto que nem o Papai Noel gostava.
E então, eu cresci. Eu já não queria brinquedos, mas um bom emprego, um país mais igualitário, com valores estabelecidos, justo e verdadeiramente democrático. Adivinha o que aconteceu? Tornamo-nos um povo manipulado ideologicamente, controlado pela mídia, pela política e pela aristocracia, ofuscados e calados por entretenimento barato, superficial e de qualidade questionável — sem que a maioria consiga sequer perceber. Até quando isso vai durar?
Fosse lá uma vez ou outra, eu entenderia; até o Papai Noel deve sofrer com as crises econômicas, o aquecimento global ou as taxas de câmbio. Mas todo ano? Parece até implicância.
Contudo, vou te dar mais uma chance. A última chance. Se você tem amor às suas renas, aos seus duendes, elfos, gnomos (ou seja lá como você chama esses seus colaboradores natalinos), levante esse rabo da poltrona e acerte no meu presente ao menos uma vez nessa sua mitológica vida.
Receba os meus mais sinceros e cordiais votos de que se dane.
P.S.: Eu sei onde você mora."
— Amor, você já terminou a cerveja? Os bolinhos estão quase prontos... — perguntou a mulher ao entrar na sala. Encontrou apenas a garrafa no chão e o envelope vazio sobre a mesinha. — Amor? — chamou ela novamente, com o celular na mão.
O trenó cantou pneus na rua em frente e o celular vibrou. "Preciso resolver uma coisa. Volto logo!"
"Ah, a mamãe tem razão...", pensou a mulher, num suspiro resignado. "O Klaus não presta!".
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