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Transeuntes

Por George dos Santos Pacheco
18/08/21 - 14:34

“Lembrar é fácil pra quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração.” Gabriel García Márquez

Esses dias, um cara me abordou no centro da cidade. “Óleo, milho, papel toalha...” Após deixar minha esposa com seus compromissos, segui pela calçada, repetindo mentalmente a lista de material a ser comprado, para “otimizar nosso tempo”. “Óleo, milho, papel toalha...”. “Melhor você anotar...”, recomendou, mas negligenciei seu conselho. Ora, só uma listinha dessas? Eu dou conta disso.

“Óleo, milho, papel toalha...”. “Ô, Pachecão!”, gritou o transeunte do outro lado da rua, acenando para mim e atravessando em minha direção, numa discreta corridinha.

Estaquei no passeio, mirando o homem sem reconhecê-lo. Já passaram por isso, esquecidos terráqueos? Que coisa feia, não é?

Não era a primeira vez que a memória me traía. Certa feita, esqueci completamente um breve período do dia, como se ele não tivesse acontecido. O infame apagão. O médico falou que havia sido por estresse, estafa mental, nada crônico, enfim, apoiando os exames na mesa. Não era motivo para me preocupar. Mas é claro e evidente que fico grilado à mera ameaça de uma frustrante falha mnemônica.

Pachecão. Quais pessoas poderiam chamar-me assim? O homem na rua esticou o punho cerrado para o tradicional, moderno e contemporâneo “soquinho” de mãos. E eu ali, olhando-o com o semblante franzido. Quem é esse sujeito, cacetas? Que vergonha.

– Cara, de onde você tira aquelas ideias? – perguntou-me numa gargalhada contida. Ideias, ideias. “Aquelas ideias...” Ora, ele falava das crônicas, eu não o conhecia pessoalmente, afinal. Era um leitor!

– Ah, irmão! Do dia a dia, das conversas com os amigos, nossos acertos, nossos tropeços... Daí quando surge uma ideia, anoto logo em algum lugar pra ela não se perder... – expliquei lisonjeado para o leitor anônimo, disfarçando a súbita indignação que interrompia a frase. Ca-ra-ca, terráqueo. Você lembra o que Dona Maria pediu para comprar? Nem eu, cara pálida. Nem eu.

Caraca. E agora? Vou ter que ligar pra descobrir. Redescobrir, na verdade. “Eu falei pra você anotar!”. É, eu sei, Dona Maria. Mas eu sou orgulhoso demais para isso, não é? Vou me esforçar para melhorar. Preciso, de fato, porque este é o tipo de coisa que sempre me envergonha.

Despedi-me do meu mais novo amigo, com outro simpático soquinho, agradecendo-lhe a leitura e o carinho. Não soube seu nome, infelizmente. Segui caminhando, buscando nos porões da mente a tarefa mister, escondida sob um monte de outras informações, para não ser necessário ligar para a mulher. “Óleo, ervilha, guardanapo...”. Imagina, Cabral no meio da travessia do Atlântico, mandando um zap pra Portugal? “O que é para eu fazer mesmo, ora pois?”. Ou então, Neil Armstrong, antes de alunissar: “Houston, como é mesmo aquela frase maneira que eu tenho de dizer?”.

Fala sério! Minha memória, às vezes, parece tão passageira, tão transeunte quanto um desconhecido na rua. Sorte a minha que para isso não faltam remédios. Sorte a nossa. Papel e caneta, foto, vídeo, bloco de notas em smartphones, bibliotecas... O mais eficiente, honesto e barato, porém, é a atenção. Eu sei, eu sei. Não é a primeira vez que falo disso por aqui – e garanto que não será a derradeira.

Será que meu simpático leitor chegou a dizer seu nome, mas eu estava tão preocupado com a lista de compras que não tenho certeza? É bem provável. E a tal relação, não haveria necessidade de anotar, se eu tivesse ouvido melhor a Dona Maria. A verdade é que a gente vai achando tudo muito normal e, na maioria das vezes, damos atenção a coisas irrelevantes, deixando passar outras verdadeiramente importantes e significativas. A rotina vai imprimindo em nosso comportamento essas pequenas indelicadezas diárias, a ponto de nos tornamos frios e superficiais. Os vícios e as virtudes se acumulam na poeira das horas.

Escrevam aí onde puderem, para não esquecerem, terráqueos. Ou prestem atenção, que é mais simples.

“Azeite, ervilha, papel manteiga...”. Caramba. Mea culpa, mea maxima culpa. Agora, não adianta suspirar.

– Alô? Querida, você me pediu óleo e mais o quê?

– Eu falei para você anotar...


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