MENU

Fale Conosco

(22) 3512-2020

Anuncie

Contato comercial

Trabalhe conosco

Vagas disponíveis

Sempre há um motivo pra tudo

Por George dos Santos Pacheco
26/07/23 - 09:14

“Falsos valores e palavras ilusórias: são estes os piores monstros para os mortais; longamente e à espera, dorme neles a fatalidade.” (Friedrich Nietzsche)

Estacionei, com certa dificuldade, numa insólita vaga daquela área de “curta duração" da Avenida Campesina – o carro quase não coube. Liguei o pisca alerta e segui para a peixaria. O tempo estava surpreendentemente bom, céu azul com poucas nuvens, temperatura agradável, um dia para ninguém por defeito. Atravessei a rua, enquanto guardava a chave no bolso, mas algo me chamou mais a atenção do que uma vaga pública disponível para estacionar ou o tempo bom em Nova Friburgo: uma aglomeração de pessoas na ponte da Rua Leuenroth, com algumas debruçando-se incautos no guarda-corpo da travessia, totalmente envolvidas, apontando o dedo para baixo, discutindo apaixonadamente.

O que, pelo amor de Deus, estava acontecendo? Certa feita havia uma mulher tomando banho no Rio Bengalas, numa outra ocasião (Deus do céu!) encontraram o corpo de um morador de rua nas margens. Putzgrila. Senti um calafrio enquanto me aproximava. Reduzi o passo, curioso. Pergunta de prova: o que fazemos quando nos deparamos com uma aglomeração? Aglomeramo-nos também!

– Olha, que gracinha, moço! – disse uma mulher com os braços apoiados no batente da mureta. Baixei o olhar na direção em que ela apontava: uma família de capivaras pastava nas margens do rio. Dona Capivara e três senhoritas capivarinhas.

– Muito legal, não é? – comentei, num sorriso, observando os pacatos roedores. Capivaras. O comum de dois é um saco, não acham? Sendo um substantivo uniforme, com apenas uma forma, nos confundem quanto ao gênero. No caso dos animais, são epicenos. Quem disse que eram, de fato, capivaras? Não poderiam ser “capivaros"? Jamais saberemos – e na verdade nem importa muito para o presente textículo – mas que confundem, confundem.

– Está cada vez mais comum… esses dias foi uma lontra. – murmurou um outro observador. Era um senhor calvo, bigodes fartos, os dois braços pendendo ao lado do corpo carregando sacolas de mercado.

– O desmatamento da Amazônia está provocando um desequilíbrio ambiental gravíssimo... – argumentou um outro, mais jovem, eloquentemente, com as mãos espalmadas no apoio. Como é que é? Amazônia? Então, as capivaras vieram de lá? Caramba. Melhor eu ir embora, logo.

– Sim, sim. É o aquecimento global. – completou o raciocínio outro cara. É sim, irmão. Daí a pouco vão brotar em nossas paragens uma família de capivaras polares também.

– E as obras de drenagem? – acrescentou alguém, en passant, e eu sinceramente não entendi se o comentário tinha alguma coisa a ver com a cena ou era uma simples conversa paralela. Não seria impossível, contudo.

– Mas são tão bonitinhas… – insistiu a mulher, sem desgrudar os olhos dos animais. A quantidade de curiosos aumentava cada vez mais, ainda que alguns apenas provassem do que se tratava e saíssem, logo em seguida.

– Mas não é o lugar delas, dona. Quero ver chamar de bonitinhas as onças que aparecem lá no Parque dos três picos. De vez em quando aparece uma, sabia? – comentou o coroa das sacolas. Claro que eu sabia. Apareceu uma também no bar do Balboa, há algumas crônicas atrás.

– Você acha que é culpa de quem, moço? – perguntou a mulher, me encarando.

– Culpa? Por elas estarem aqui?– redargui confuso. A população de rua em Nova Friburgo aumentando absurdamente e o pessoal preocupado com um bando de capivaras? Façam-me o favor.

– Sim, sim. Deve haver um motivo, não acha? – confirmou ela, com incrível naturalidade, como se devesse necessariamente haver algum culpado por aquilo.

– Minha senhora, sempre há um motivo pra tudo. Quando não há, é porque existe uma desculpa. – afirmei, procurando uma forma de me desvencilhar da discussão.

– Quem é responsável eu não sei, mas dá uma churrascada daquelas! – disse alguém ao derredor, a voz se afastando enquanto falava. A mulher ainda me encarava, esperando minha resposta.

– Eu acho que a culpa é dos russos. Se eles não houvessem atacado a Ucrânia, as capivaras estariam até hoje em seu habitat natural… – comentei com ironia, movendo o olhar das capivaras para meus interlocutores.

– Será, cara? – perguntou o mais jovem, após permanecer por alguns segundos em silêncio, parecendo digerir a informação, com o olhar intrigado. Basta. Agora eu vou embora.

Não cheguei a responder e saí à francesa. Quando eu percebi já havia passado mais de vinte minutos ali observando animais silvestres, discutindo problemas ambientais e geopolítica. E eu nem havia comprado o peixe. Faço o que, agora? Tiro o carro da vaga ou não?

Eu sei muito bem o que você pensou, terráqueo. “Isso é uma questão de bom senso”. Concordo. Se o camarada da frente tivesse chegado o carro mais para vante, eu não teria dificuldade em encaixar o meu na vaga. Agora, veja: se a maioria dos motoristas “esquece” o carro na vaga de curta duração até o pisca alerta derreter, pouco se importando se há mais alguém precisando da vaga, como eu posso esperar que se preocupe com os moradores de rua, com os pedintes, os ambulantes nos sinais? Isso é que devemos observar e discutir quem são os culpados, buscar quem resolva. É mais fácil, porém, mudar de calçada ou fechar o vidro do carro, ignorar, descaradamente.

Não é confuso? Como podemos ser tão compassivos com os animais e ao mesmo tempo tão indiferentes com as pessoas? Deve haver um motivo para isso, não acha? É claro que há, sempre há um motivo pra tudo, terráqueo. Quando não há, é porque sobram desculpas.


O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.

TV Multiplix
TV Multiplix Comunicado de manutenção TV Multiplix Comunicado de manutenção
A TV Multiplix conta com conteúdos exclusivos sobre o interior do estado do Rio de Janeiro. São filmes, séries, reportagens, programas e muito mais, para assistir quando e onde quiser.