Quem ressuscitou Odete Roitman?
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"O mal é aquilo que nos distrai." (Franz Kafka)
"Quem matou Odete Roitman?" foi a pergunta que mais se ouviu na última semana, nas portas dos botequins, em salões de manicures, filas de supermercados, lotéricas, padarias; quiçá nas assembleias legislativas e no Congresso Nacional.
"Vai chover?", "o preço do café vai abaixar?", "o homem foi mesmo à Lua?", "qual a cor do cavalo branco de Napoleão?" Nada disso; ninguém se interessou por essas questões. Por que deveríamos? Temos coisas mais interessantes com o que nos entreter, ora, rapá.
Na versão original, em 1988, o assassino de Odete Roitman foi a personagem Leila, esposa de Marco Aurélio, interpretados por Cassia Kiss e Reginaldo Faria, respectivamente. O conterrâneo, inclusive, protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da televisão brasileira: a fuga do país e a famosa banana para o Brasil. No remake, quem atira na vilã é o próprio Marco Aurélio, desta vez interpretado por Alexandre Nero. E pasme: na versão, Odete Roitman sobrevive e é ela quem "mete o pé" do nosso "florão da América".
"Quem matou Odete Roitman?" Agora é mamão com açúcar, mas no fim da década de 1980, o enigma foi páreo duro para a nova Constituição, para o campeão brasileiro de futebol e até mesmo para o naufrágio do Bateau Mouche. Nada ocupou tanto a mente e o cotidiano dos tupiniquins quanto o enredo da novela e o mote principal. Convenhamos, porém, que apesar de extremamente estimulante, descobrir o autor da morte da vilã do tal folhetim não é nada demais; quero mesmo é que alguém aponte quem, literalmente, ressuscitou Odete Roitman. Algum palpite?
A resposta para essa e muitas outras perguntas é muitíssimo simples: a malandragem. Isso mesmo, noveleiro leitor. De tempos em tempos, por um alinhamento de planetas, mudanças climáticas ou por decisão de alguma autoridade, a humanidade fica subitamente sem criatividade; assim, pá, num estalar de dedos. E a brilhante solução encontrada pela indústria cultural é resgatar antigos sucessos.
Na dramaturgia brasileira, isso não é nenhuma novidade; aconteceu com Escrava Isaura, Gabriela, O Astro, Tititi, Irmãos Coragem, A Viagem, Éramos Seis e por aí vai. E se você acha que isso é uma exclusividade nossa, está (mais uma vez) redondamente enganado. Anote aí: Bravura Indômita, Cassino Royale, Duna, It: A Coisa, O Homem Invisível, O Professor Aloprado, Sob o Domínio do Mal... todos têm uma segunda versão. Isso sem mencionar as obras que ganham uma infinidade de sequências e spin-offs de qualidade e relevância questionáveis. Reste claro, por oportuno, que a releitura, como "forma de preservar a relevância das obras originais e permitir que novas perspectivas sejam ouvidas", acontece não só na televisão e no cinema, mas também na música e em muitos outros produtos culturais. Contudo, não pretendo ingressar mais do que o necessário nessa seara.
A justificativa de oportunizar que novas gerações se conectem com as obras, homenageando o material original e incorporando elementos contemporâneos que ressoam com o público atual, é bonita, quase comovente. Mas sempre vale a pena? Não sei dizer.
Opa, peraí, terráqueo! Não há necessidade de uma reação dessa monta. O senhor pode até discordar de tudo o que disse, e tem todo o direito disso; contudo, ao menos em um ponto há de concordar: alguns trabalhos são verdadeiras obras de arte, únicos, talvez. Ao atrever-se a dar uma nova roupagem a algumas obras, pode-se justamente deturpá-las. O risco é muito alto para que valha a pena corrê-lo.
"Quando a obra da praça vai terminar?", "Capitu traiu Bentinho", "o acordo de paz no Oriente Médio vai funcionar?", "em quem votarei nas próximas eleições?" Ora, meu senhor, ninguém quer saber disso. Afinal, temos coisas mais importantes com o que nos preocupar.
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