O dente quebrado

Apesar de alguns defenderem com unhas e dentes que Leonardo da Vinci teria sido o inventor da bicicleta, o veículo foi concebido, na verdade, pelo Barão Karl Von Drais em 1817, e é considerado, atualmente, o meio de transporte mais utilizado no mundo. Hoje em dia, há bicicleta de tudo quanto é tipo, para competição, trabalho, casal e até elétrica, mas a minha encrenca mesmo é com esse monte de apetrechos que acompanham a dita cuja. Ora.

A questão não é nem a suposta utilidade do acessório, todo invento tem seu efeito colateral, vá lá. Von Drais não criou junto com a bicicleta o joelho ralado, o “galo" na testa e o dente quebrado, isso aí já existe desde que o homem caiu pela primeira vez da ribanceira. Mas estes acessórios...

Pois bem. Pouco antes das festas de 2020, um dos garotos reclamou que o descanso (quem usa isso hoje em dia, meu Deus?) da bicicleta estava arriando e eu, na qualidade de pai (e pau pra toda obra: dou uma de mecânico, eletricista, pedreiro, pintor, carpinteiro e o que mais surgir, feito aquele urso do desenho antigo), saquei meu alicate universal e pus-me a ajustar a mola que estava cansada. Mas, eis que por um descuido, horóscopo ou coisa do tipo, a mola escapuliu e a mão, com ferramenta e tudo, deu em cheio na minha boca.

Putzgrila. Joguei o alicate longe, catei um caco de dente caído na grama (a gente se apega a cada coisa não é?) e segui para dentro de casa, chorando e pedindo socorro tal qual um garotinho que apanhou na escola. Naquele momento, me senti tão estúpido e tão azarado, que eu desejava voltar no tempo somente aqueles poucos minutos para corrigir a cagada. Mas não, não tinha jeito. O que estava feito, estava feito.

O pior de tudo era ver o semblante de preocupação da minha esposa e filhos, além, é claro, de me sentir burro. O homem sempre busca um culpado, nem que seja ele mesmo.

Eu chorava de soluçar, mas fui prontamente acudido por ela, que me tranquilizou, aplicou gelo e analgésico – e me deu colo, o que eu mais precisava, na verdade. No dia seguinte, fiz uma consulta emergencial com o dentista, e hoje, o dente já está tratado, remendado, tudo resolvido. Até mais rápido do que eu poderia imaginar. E passado este tempo, posso refletir melhor sobre tudo que aconteceu.

Acompanhem meu raciocínio, risonhos e jocosos terráqueos: já não me sinto tão azarado assim (talvez um pouco estúpido, já que todo e qualquer acidente é uma conjugação perfeita de elementos para que algo certamente dê errado). Aliás, eu sou é um cara de muita sorte, pois chegar ao fim do ano peculiar que foi 2020, marcado por tanta gente que morreu, que perdeu familiares, emprego, e passou por outros tantos infortúnios, apenas com um dente quebrado (!) (e dois quilos acima do peso, confesso) é motivo de orgulho, e não pesar! Eu tenho mesmo é que agradecer.

E tudo isso por culpa de quem? Da China, Leonardo da Vinci, Barão Von Drais, do descanso da bicicleta? De ninguém, caríssimos terráqueos, nem minha. Mesmo porque se eu soubesse que aquela tarefa poderia me custar uma fratura parcial do elemento 21, eu não teria me arriscado. Não mesmo.

A sociedade em que vivemos, desde que o homem caiu pela primeira vez da ribanceira, parece sempre nos condicionar para reclamarmos em vez de agradecer, e talvez, justamente por isso, de vez em quando a gente precisa quebrar uns dentes, perder um amor, dar uma topada na quina, para lembrar o que nos é verdadeiramente valioso nessa vida. Se você, cara pálida, só “quebrou um dente”, toca aqui e agradeça. Um brinde ao dente quebrado.