Quem tem boca vai a Roma!
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"A necrofilia da arte tem adeptos em toda parte" (Gilberto Gil)
Quando chegou do mercado, encontrou a casa completamente revirada. As gavetas dos armários da cozinha estavam todas abertas, com itens e utensílios espalhados sobre a pia e o aparador. Sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha: aquele era um dos bairros mais tranquilos da cidade, seria possível que algum ladrão ou viciado tivesse adentrado a casa? Embora fosse pouco provável, ainda assim, era possível.
Apoiou as sacolas com os produtos sobre a mesa e seguiu caminhando, cautelosa, "pisando em ovos", como se costuma dizer. Havia, na casa, um som distante, um barulho desconexo e insistente. Se alguém havia invadido o lar, esse alguém ainda estava por lá. Pegou um rolo de macarrão, tomou coragem, e avançou em direção à sala.
Igualmente bagunçado, o cômodo tinha documentos espalhados sobre o sofá, enquanto a gaveta da estante, entreaberta, exibia algumas folhas. No chão, havia recibos de contas, anotações diversas, agendas… uma verdadeira desordem. Ao fundo da sala, a mulher avistou o marido de costas, a cabeça baixa, mexendo em algo sobre a mesa. Sentiu um frio na barriga.
— Amor? O que está acontecendo? — perguntou ela, abaixando o rolo de macarrão.
— Ah, oi, amor! Estou procurando nossos passaportes — respondeu o marido, virando o rosto rapidamente para trás e voltando à sua tarefa.
— Nossos o quê?
— Nossos passaportes!
— E por quê? — perguntou ela, aproximando-se. Deixou o rolo de macarrão sobre a mesa e encarou o homem. Sobre o tampo, uma pasta aberta, contendo a certidão de casamento, identidades antigas, declarações do imposto de renda e até a escritura da casa.
— Vamos para Roma, meu bem! — disse ele, empolgado, com os olhos marejados.
— O que vamos fazer em Roma? — continuou ela, ainda mais intrigada. O que estava acontecendo com o marido?
— Ora, você não está sabendo? O papa morreu! Está em todos os jornais! — respondeu ele, parando abruptamente sua procura e gesticulando em direção à televisão.
— E?
— E? Nós vamos ver o papa!
— Depois que ele morreu?
— O funeral dele dura três dias, é um evento único.
— E posso saber com que dinheiro você pretende ir para Roma? — perguntou ela, puxando uma cadeira e se sentando. Colocou o rosto entre as mãos e mexeu nos cabelos antes de voltar a encarar o marido.
— Ah, não se preocupe, eu economizei durante meses! — respondeu ele, com naturalidade.
— A gente cheio de contas para pagar, dívidas a vencer, e você economizando para ir ao Vaticano ver o velório papa? Nem católico você é! — exclamou a mulher.
— A gente merece, amor! Além disso, vai ser romântico! — argumentou ele, se aproximando e colocando as mãos em seus ombros.
— E desde quando um funeral é romântico? — retrucou ela, afastando a mão dele.
— Tá, tudo bem, eu exagerei um pouco. Mas não acha que será um evento inesquecível?
— Inesquecível é eu chegar em casa e encontrar essa bagunça porque meu marido decidiu sozinho ir pra Europa acompanhar o funeral do papa. Pelo amor de Deus, você nunca me levou nem para comer um pastel na praça do Suspiro, agora quer fazer uma viagem internacional? — disse ela, levantando-se e caminhando para a cozinha.
— Quem tem boca vai a Roma! — ainda tentou argumentar, mas o vento não estava muito a seu favor.
— E quem tem juízo ouve o que a esposa diz: nós não vamos coisíssima nenhuma para Roma ou qualquer outro lugar. Se quiser assistir ao velório do papa, veja pela TV, porque vão explorar o assunto até não poder mais. A morte de uma celebridade é um prato cheio para a mídia, quanto mais se for religiosa. Melhor que isso, só a queda de um avião ou um ataque a bomba em algum país distante, serve até como cortina de fumaça para os reais problemas do país — disse ela, virando-se e balançando o dedo em direção ao homem.
— Mas amor...
— Mas nada! Não discute, porque você já conseguiu tirar a minha paz. Eu aqui achando que estávamos sendo assaltados e você procurando passaportes para fazer uma viagem internacional? Olha, esse dinheiro que você economizou vai ser usado sabe para quê? Para pagar todas as contas atrasadas, o cartão de crédito e o empréstimo no banco.
— Poxa, que mau humor, hein? — resmungou ele, guardando os documentos de volta na pasta.
— E já começa a arrumar essa confusão. Ah, antes que eu me esqueça, hoje a viagem mais longa que você vai fazer é do nosso quarto para a sala. Hoje você dorme no sofá.
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