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Por que estamos nus?

Por George dos Santos Pacheco
12/10/22 - 07:00

“Nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura.” (Aristóteles)

Quando abri os olhos, tudo era confusão e medo. As paredes, o chão de cerâmica vermelha, as camas. O vento frio que entrava pela porta e o basculante redondo, alguns grilos que cricrilavam ao entardecer. Nada disso fazia o menor sentido. Nada disso parecia real, nem eu mesmo. Ainda que soubesse muito bem o meu nome, não podia dizer exatamente quem era.

Algumas vozes murmuravam pelo corredor próximo e uma gargalhada ecoou num outro extremo. Pude perceber um cheiro ácido e nauseabundo vir junto com o vento, mas logo depois ele se extinguiu, tão volátil quanto minha memória. Tudo era confusão e medo. Foi quando eu percebi o velho sentado na outra cama.

– Que lugar é este? – perguntei, num murmúrio cauteloso – O que estamos fazendo aqui?

– Prenderam-nos aqui. – respondeu-me enfaticamente e sem me encarar, balançando o corpo para a frente e para trás.

– Quem? Quem nos prendeu aqui? E por que estamos nus? – continuei, ao perceber que meu eminente companheiro, assim como eu, estava pelado, com as rugas dobrando umas sobre as outras, as mãos apoiadas nos joelhos. Falava num tal estado mórbido, insidioso e perturbador, em movimentos lassos do queixo ao pronunciar as palavras.

– Eles… eles nos prenderam. Desgraçados. – explicou num tom revoltado, levantando o olhar finalmente para mim e balançando o dedo em riste. Seus olhos, abaixo de uma grande testa proeminente, eram de um castanho profundamente escuro, com orlas arroxeadas na face cor de cera.

– Por que estamos nus? – insisti perturbado, sentindo os olhos encherem-se de lágrimas. As paredes em volta de nós, manchadas e descascadas, pareciam nos comprimir à medida de nossas respirações, numa angústia crescente e subversiva.

– Porque estamos invisíveis. A roupa nos denunciaria. – respondeu-me, desviando o olhar e mudando as feições para traços de satisfação ao perceber “algo óbvio”. Então corri o olhar pelo quarto e vi minha camisa e calça jeans despojadas no assoalho encardido, próximo aos meus pés.

– E… o que querem de nós? Eu não entendo… o que… o que está acontecendo? – esbravejei ao me levantar, sentindo o rosto corar e as mãos tremerem quando as lágrimas ganharam a face.

– Shh! Você faz perguntas demais. – repreendeu-me num esgar, do qual cintilavam dois olhos hipnóticos, erguendo-se com incrível facilidade. Esquivei-me do toque de suas mãos quando ele se aproximou. – Apenas escute. Querem moldar nossas opiniões, nossos conceitos, nossos valores. Por isso nos trancaram aqui. Aplicam-nos substâncias fortes para facilitar o embuste, depois nos oprimem com discursos e mesmo com o silêncio. Todos os dias. E essas vozes movimentam-se dentro das nossas cabeças até não aguentarmos mais… até as repetirmos, como se nossas fossem. – concluiu apontando o dedo esticado para a fronte feito uma arma e fazendo uma onomatopeia quase surda de um tiro com os beiços.

– Oh, meu Deus, precisamos de ajuda! – murmurei num choro sofrido, aos soluços, quando cobri o rosto em desespero.

– Shh! Venha. – disse abanando a mão freneticamente antes de sair para o corredor, puxando uma das pernas. – Está vendo aqueles homens de branco naquela ponta? Eles nos vigiam; são os mesmos que nos injetam os soros – e nos batem, com um perverso regozijo, quando não obedecemos. Mas lembre-se: somos invisíveis agora. E desde que façamos silêncio eles não nos notarão. – continuou, caminhando na ponta dos pés e corpo arqueado, balançando a bunda branca e flácida na minha frente.

Os homens de branco cruzavam os corredores com as mãos atrás do corpo e nem se importaram conosco. Por fim, alcançamos um pátio com uma aparência agradável, com bancos de cimento e árvores, onde alguns pássaros gorjeavam e os grilos continuavam a aguda sinfonia. As pedrinhas no chão incomodavam os passos e precisei parar algumas vezes. O velho estacionou sob uma árvore que estendia a grande copa bem no centro do pátio e meneou a cabeça com o cenho franzido.

– Veja aquele muro: do outro lado passa uma estrada. Você precisa ir até lá e pular para além dele. Nada disso é real, mas lá fora você encontrará a verdade. E lembre-se: eles, todos eles, se incomodam com o que agride a ordem estabelecida. Então, finja que acredita! Não os confronte. – orientou com a mão em concha, para que ninguém nos ouvisse, no lusco fusco de um entardecer de primavera.

– E você? – perguntei, rompendo o passo, mas voltando o olhar para trás.

– Eu não posso sair daqui. Estou aqui há muitos invernos e já não me convém. Mas estarei contigo todos os dias de sua vida. Vá agora e ilumine-se, pois até uma pequena estrela pode ser o sol de alguém.

Suspirei e segui caminhando, ainda que vacilasse. O muro crescia diante de mim e a angústia em meu peito. Alguns homens e mulheres, sob as silhuetas das longas e delgadas folhas, moveram o olhar para mim e minha respiração acelerou. Acima de nós, um grande volume de nuvens igualmente movimentava-se, com ilhas de um céu azul fulgurante cada vez mais escuro entre elas.

Ainda que soubesse meu nome, não podia dizer quem era. Eu agonizava num leve desespero, e então virei o rosto para trás, subitamente. O velho não estava mais lá e, sendo bem sincero, não sei se de fato esteve. Acelerei os passos no momento em que as pessoas, antes entretidas consigo mesmas, alienadas num universo particular, agitavam-se gritando e apontando para mim, alertando os homens de branco, que arrancaram em disparada. Eles querem moldar nossas opiniões, nossos conceitos, nossos valores… mas não os confronto. Ao abrir os olhos, tudo era confusão e medo.


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