Dissabor cotidiano
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"Exige muito de ti e espera pouco dos outros. Assim, evitarás muitos aborrecimentos." (Confúcio)
Aconteceu, embora muitos se recusem a acreditar, numa das esquinas mais movimentadas da principal avenida da cidade. O tráfego de pessoas era intenso naquela manhã; se eventualmente ocorria um congestionamento, alguns, mais jovens e rápidos, rompiam céleres e impacientes entre os corredores de gente. Aconteceu, meu senhor, e bobo é quem duvida.
Eis que um sujeito parou à beira da calçada, esperando a oportunidade para atravessar a rua. Simples, não é? Fato corriqueiro, banal e até vulgar. Acontece que aquele sinal é demorado à beça, todo mundo sabe disso. E quando fecha, o outro abre; daí vem carro da outra via também. Para chegar ao outro lado, quase é necessário pular na pista num raro intervalo do trânsito dos carros. Dá para entender um negócio desses?
"É agora ou nunca", pensou o jovem desconhecido, observando os veículos atenciosamente. Ia ou não ia? Não tinha certeza. Entretanto, levou uma trombada por trás que o fez descer da calçada antes mesmo de decidir, num impulso involuntário para não perder o equilíbrio.
— Ô, rapá? Tá maluco? — disse ele, virando-se para trás, bufando, desconcertado.
— Me desculpa aí, irmão! É que minha mulher está falando aqui, tem um monte de coisas para comprar, e o supervisor deu um pito na gente aqui no grupo do trabalho… Além do mais, a Defesa Civil está alertando que o tempo vai mudar. Vai ter rajada de vento e chuva moderada a forte, com possibilidade de queda de granizo. — respondeu o outro, corando.
— E você vai ficar andando por aí, olhando a tela do celular? — continuou o primeiro, num tom aborrecido.
— Que porra é essa?! — berrou o segundo, virando-se para trás, antes de ter a possibilidade de responder.
— Vocês dois vão ficar parados aí no caminho? — questionou um terceiro, após chocar-se com o segundo, por sua vez.
— É que eu ia atravessar, mas esse maluco aí bateu por trás, "distraído no celular"… — respondeu o primeiro, debochando de seu improvável antagonista.
— Ora, eu estava resolvendo coisas importantes! Você também… parou de repente! — justificou-se o outro, meneando a mão que não segurava o celular na direção do rival.
— Como "de repente"? Estou aqui há quase cinco minutos tentando atravessar a rua! Você é que está errado; quem bate por trás sempre está errado — argumentou o primeiro, cheio de autoridade, com questionável conhecimento.
— Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? — perguntou um guarda, se aproximando da confusão. A fila de gente se estendia por quase todo o quarteirão, formada por pessoas que batiam uma após a outra. Alguns curiosos se aglomeravam para tentar entender o ocorrido e os flashes dos celulares pipocavam, as imagens ganhando rapidamente as redes sociais.
— Seu guarda, esse sujeito aí parou de repente, obstruindo a via, não sinalizou, nem nada… — disse o segundo, tentando justificar-se.
— Ei, pode parar! Eu explico. Eu ia atravessar a rua e esse camarada aí me deu uma trombada por trás; quem bate por trás sempre tem culpa… — contrapôs o primeiro, que entrou na confusão só porque queria atravessar uma rua.
— Senhores, isso foge da minha alçada. Isso é coisa de polícia! Peraí que eu vou acionar o colega… — disse o guarda, sacando o celular de um dos bolsos de seu admirável uniforme.
— Positivo, operante! — disse o policial, se aproximando, chegando tão rápido quanto o Chapolin Colorado. O guarda fez sentido e continência, e o militar respondeu ao gesto elegantemente.
E nem preciso contar que todo mundo queria ter razão, com todos os motivos e argumentos imagináveis. O policial ouvia a todos pacientemente e o guarda tentava organizar o trânsito na calçada, mas, a essa altura, a aglomeração de gente era tão grande que ninguém ia e ninguém voltava. "Ô, ô! Como é isso aí? Eu tenho que ir trabalhar!", gritou alguém lá no meio da multidão e o bate boca estava instalado.
Foi então que chegou também o prefeito. Vinha com seu manjado look social, acompanhado de um assecla que fazia fotos em vários ângulos, posicionando o celular na vertical, horizontal, diagonal e o escambau. Por fim, posicionou-se e começou a filmar o bem amado.
— Olá, gente! Hoje eu estou aqui bem no centro da cidade, onde acaba de acontecer o primeiro engarrafamento de gente da Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Somos destaque no estado e também no Brasil, pelas belezas naturais, pela economia, e agora também por isso. Quero aproveitar e anunciar que em breve teremos um desfile comemorativo pelo fato pioneiro, além de prometer para todos vocês que também teremos um engarrafamento de crianças, de obras, de pets e de tudo que a gente puder imaginar! — exclamou o chefe do Executivo de maneira eloquente, feliz e sorridente, e todo mundo esqueceu a confusão por um minuto e o aplaudiu. E, da mesma maneira que surgiu, desapareceu da frente de todos, sem deixar rastros.
— O senhor me desculpe, mas não há o que fazer. Isso é o que se chama, juridicamente, de "mero aborrecimento" ou "dissabor cotidiano". Peçam desculpas um ao outro, apertem as mãos e cada um siga seu caminho. Além do mais, o trânsito está parado por causa de vocês dois, e essa "montoeira" de gente não está gastando dinheiro no comércio. A economia da cidade está parada!
— Mas, senhor policial… — tentou convencer o policial, mas o homem nem se emocionou.
— Não quero saber! Bora! Circulando! — disse ele, gesticulando para que seguissem seus rumos.
E aquele jovem desconhecido finalmente atravessou a rua. Caminhava inconformado, calçada afora, pisando duro, o sobrolho franzido, a expressão de poucos amigos. Estalou os lábios, num muxoxo indignado. "Dissabor cotidiano…", pensou. Isso é porque não foi com ele!
Pegou o celular e abriu o aplicativo de mensagens. "Você não imagina o que acabou de me acontecer…", começou a digitar para a esposa, sem perceber que duas senhoras que, há muito não se viam, pararam bem no meio do caminho para conversarem. O impacto foi inevitável!
— Ô, rapá? Tá maluco? — disseram elas, num tom severo, virando-se para trás.
Dá para entender um negócio desses?
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