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Uma emboscada para Coelho Pascal

Por George dos Santos Pacheco
05/04/23 - 08:40

“O mal não é ter uma ilusão, o mal é iludir-se.” (José Saramago)

Ele estava meia hora atrasado. A mulher conferiu mais uma vez o relógio de pulso e tornou a mexer o açúcar no fundo da xícara de porcelana branca, apoiada num pires sobre o tampo da mesa da lanchonete. Era um ambiente à meia luz, numa rua transversal da Alberto Braune, ideal para encontros furtivos, negócios escusos e casos amorosos. O ventilador de parede soprou um vento quente e seco, tilintando a hélice mal conservada. Ergueu o olhar e espreitou a janela. Ele não viria.

– Ele não vai vir… – disse ela, balançando as pernas inquietas e bicando o café, sentada sozinha à mesa, na companhia apenas do dispenser de temperos, entre sachês de sal, ketchup, maionese, mostarda e açúcar, além de um cardápio em uma folha plastificada.

– Esperemos mais um pouco. – orientou o homem no outro lado da fonia. Estava numa van com um logotipo de lavanderia, junto a mais quatro policiais, operando a escuta e à espreita de uma oportunidade. Essa era a chance perfeita em anos de investigação, uma chance única, que não poderiam perder.

– Droga, eu estou nervosa… – murmurou ela, apoiando com mãos trêmulas novamente a xícara na mesa. – Gente, vocês não veem? Ele não vai vir. – insistiu ela, ameaçando levantar-se. Usava um vestido curto azul com bolinhas, sem decote e botões na frente, com cinto e bainha de ruffle.

– Suspeito se aproximando em sentido Alberto Braune. Terno preto e óculos escuros. Está sozinho, conforme combinado. Equipe Alfa, atenção aos meus comandos. Experiência Fonia… – disse o chefe da missão policial, e várias pessoas seguiram-se uma a outra com “recebendo forte e claro”, culminando com a moça da lanchonete. – Fique calma. Tudo vai dar certo. – concluiu o homem, seriamente.

– Ok… – respondeu ela, a voz fraca e comprimida, persuadida de seu destino, certa que o teria de cumprir, fosse como fosse. E então ele entrou na lanchonete, empurrando a porta de alumínio que rangeu sobre os gonzos. A estação da rádio tocava uma música popular, num volume que abafava as conversas sem prejudicar o atendimento.

– Olá… – disse ele aproximando-se da moça, que levantou-se para o cumprimento. Ele tirou os óculos e beijou-a duas vezes. – Desculpe a demora, mas precisei atender a um cliente de última hora. – justificou-se ao sentar-se na outra ponta da mesa, abrindo o botão do blazer e ajeitando com ambas as mãos as orelhas deitadas em direção à nuca. “Café?”, perguntou a garçonete, e ele meneou a cabeça de modo afirmativo.

– Pensei que não viria mais… – tartamudeou ela tristemente, consternando-o, bebericando outra vez a xícara e manchando-a ainda mais do batom vermelho.

– Eu jamais abandonaria uma mulher como você… – disse ele num sorriso, estendendo as mãos para as dela. “Excelente, continue assim. Agora, faça-o falar...”, orientou a voz metálica na escuta.

– Eu é que não perderia esse encontro por nada nessa vida… – contra-argumentou ela, apelando para o ego do grande e incrível Coelho Pascal, unanimidade de uma sociedade inteira. Como capturar alguém como ele? Só havia um jeito: uma confissão.

– Não quer ir para um lugar mais reservado? Meu flat, ahn? Nós dois poderíamos beber alguma coisa… – flertou Pascal, encarando-a com seus grandes olhos vermelhos e tremelicando os longos fios de seu bigode quando a garçonete finalmente trouxe o fumegante café.

– Ah, eu acho que ainda não. Vamos dar tempo ao tempo, que tal? Sua história sempre me fascinou e você sempre foi para mim algo utópico, inalcançável. Uma fantasia. Acho que ainda não estou preparada para isso! – respondeu ela, desviando o olhar, num simulacro de pudor. A verdade é que o comportamento e o tipo de conversa que ela devia conduzir fora ensaiada com a polícia a fim de alcançar um premeditado objetivo.

– Ora, uma fantasia? Não é para tanto. Eu apenas mantive o legado de meus antepassados. A tradição foi trazida para a América por imigrantes alemães, entre o final do século XVII e o início do século XVIII. Sabia que no Antigo Egito, o coelho simbolizava o nascimento e a nova vida? – explicou ele, enquanto esvaziava o sachê de açúcar para, ato contínuo, misturá-lo ao café. – Não vai comer nada? Acho que vou pedir uma fatia de bolo de cenoura...

– Não, obrigada! – respondeu ela, espalmando a mão direita, e deu continuidade à conversa. – Nova vida? Nossa, que máximo! Pena que tudo ficou tão deturpado, não é? Você não se incomoda com isso? – perguntou, contendo o nervosismo. “Você está indo muito bem. Respira e continua...”

– Um pouco, não é? Mas apesar de tudo, ninguém me quer como inimigo. Além do mais, o negócio dos ovos vai de vento em popa e ajuda a manter a tradição… – disse ele assoprando a bebida e sorvendo um gole, dando-lhe uma piscadela de olhos. “Vamos direto ao ponto, ok? Ele mordeu a isca. Faça-o falar sobre o mercado dos ovos...”

– As pessoas reclamam do preço, mas continuam comprando! É incrível como consegue isso! – comentou com ar elogioso, esticando a mão para tocar a sua, macia feito pelúcia.

– Ah, minha querida. As pessoas gostam de ser iludidas e o segredo do comércio sempre foi convencê-las de que um determinado produto é uma necessidade ou vantagem, independente do que seja. No caso dos ovos, por exemplo. A mesma quantidade de chocolate custa quase três vezes mais do que numa barra de chocolate, devido ao valor agregado. Sabe, eu era apenas um coelhinho quando meu pai passou a ofertar brindes vinculados ao produto, aumentando as vendas consideravelmente. E hoje podemos nos dar ao luxo de reduzir o peso dos ovos e vendê-los pelo mesmo preço, o que incrementa a margem de lucro de maneira exponencial. Somos agora um segmento consolidado no mercado, não temos nem mesmo concorrência. Afinal, quem é que não gosta de chocolate? – explicou orgulhosamente, com ar de infinita sabedoria, entregando tudo de bandeja para os policiais que comemoravam na van. “Conseguimos, rapazes! Vamos lá, já temos o suficiente...”

– Nossa, você é brilhante… chegou a me dar um calor, sabe? – comentou ela, agradecendo por tudo estar acabando, enfim. “Parabéns, moça! Você foi perfeita. Já estamos chegando...”

– A minha ideia agora é expandir os negócios. Pretendo invadir as festas de fim de ano e vender ovos de Páscoa natalinos. Aquele velho europeu não vai ter outra opção a não ser aceitar. O que acha? – explicou, plenamente satisfeito e continuou desbragadamente. – Tem certeza de que não quer ir para o flat? – insistiu ele, num tom ligeiramente lascivo e sedutor, no momento em que os policiais entravam no estabelecimento, metidos em ternos negros, de armas em punho e com os distintivos pendurados no pescoço.

– Perdoe-me… eu não tive outra escolha… – disse ela, com lágrimas nos olhos, para surpresa do símbolo.

– O que você fez? – perguntou Pascal, contorcendo o rosto num esgar, cerrando os pequeninos dentes, ao ser tomado uma fúria súbita, quando os investigadores o seguraram pelo braço.

– Senhor Coelho Pascal? O senhor está preso por fraude comercial, de acordo com o previsto com o artigo 175 do Código Penal. Tem o direito de permanecer calado, e tudo o que disser poderá ser usado contra você num tribunal. – disse o policial encarregado da operação “O que trazes para mim?”, enquanto os outros o conduziam para fora da lanchonete, sob os olhares curiosos dos demais clientes.

– Desgraçada! Traíra! – gritava o coelho, eriçando os pelos brancos pela raiva, as orelhas agora esticadas para cima, o terno completamente em desalinho, enquanto era praticamente arrastado de sua mesa.

– Por favor, me perdoe! Eu te amei de verdade! – implorou a mulher, afundando o rosto banhado em lágrimas nas mãos. Coelho Pascal foi preso, mas sendo réu primário e com bons antecedentes, obteve a suspensão condicional do processo e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. No ano seguinte ele estaria de volta. Que bom. Afinal, quem é que não gosta de chocolate?


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