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Só os bêbados sabem

Por George dos Santos Pacheco
02/02/22 - 14:32

“É absurdo dizer, conforme a linguagem popular, que alguém se esconde na bebida; pelo contrário, a maioria esconde-se na sobriedade.” (Thomas de Quincey)

Eu sou o que se poderia chamar de etilista social. Nada mais é que uma maneira bonita de dizer que gosto de beber uns gorós de vez em quando, da qual faço uso, com a maior cara de pau do mundo, durante entrevistas de anamnese. “Bebe?”, “Eventualmente”, respondo após um breve pigarro, impostando a voz. Confesso, aliás, que já tomei lá minhas carraspanas, o que não vem ao caso, contudo. Inclusive, já precisei ficar de bico seco, vez ou outra. Fazer o quê? E embora mais contrariado do que resignado, descobri, que manter-se abstêmio também tem suas vantagens. Tem? Eu acho que sim.

A verdade, facundo terráqueo, é que me sinto um estranho no ninho em um evento em que todos estão bebendo, exceto eu. Mas cá entre nós, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Numa situação dessas, todos tem um certo nível de comprometimento da lucidez, enquanto o camarada que se esquiva da bebida, para assombro de quem serve a dita cuja, se torna senhor de si. Escolhe em quais discussões participar, o que defender, o que refutar. É muito poder para uma pessoa só! Estou certo ou estou errado?

O problema é que o bêbado tem uma espécie de poder extrassensorial e quase paranormal de irritar o interlocutor, seja ele o Papa, Dalai-lama, um eremita, qualquer um. Foi assim que, numa dessas confraternizações da vida, um amigo (que já estava pra lá de Bagdá) tocou justamente naquele ponto nevrálgico de um conjunto de crenças e valores que são quase um dogma para mim, da forma que só os bêbados sabem. Permanecer em silêncio era o mesmo que concordar. E eu, que até então, sentia-me feito um adulto numa festa de crianças, pus-me a objetar feito outro bêbado, sem ter colocado uma gota sequer de álcool na boca.

Os demais riam, salpicavam informações superficiais sobre o assunto em questão, num misto de estupefação e curiosidade, segurando tulipas com o mínimo em riste, de modo um tanto caricato. Foi aquele meio tempo suficiente para mudarmos de assunto e arrefecer os ânimos. Enquanto servia-me de um salgadinho, sentindo a respiração desacelerar e o rubor do rosto se desvanecer, assisti ao inconveniente alocutário dar mais uma talagada, gargalhando e pouco se importando com o ocorrido. E eu bufando?

Discutir com um bêbado é uma tarefa hercúlea e vã. Naqueles brevíssimos segundos de uma clareza epifânica, senti vergonha. Cacetas. Opinião é uma ideia confusa acerca da realidade e que se opõe ao conhecimento tido como verdadeiro, segundo a Filosofia de Parmênides. Por que, então, fiz questão de debater a matéria com alguém tão distante de seu tino? Chega a ser pueril, quando não insensato, agir assim. Se estou tão certo de minhas verdades, um julgamento contrário não pode, nem deve me abalar. A cada um bastam suas próprias convicções.

Embora insensato, fazemos isso todo santo dia. A sociedade é como uma festa em que todos estão bêbados. Cada um com sua própria razão, buscando eclipsar o outro com um tom de voz mais alto, persuadindo pela imposição das ideias e não pela qualidade delas. No grito. Defendem-nas com mais afinco do que a suas próprias mães. A sociedade está bêbada e besta é quem discute com ela. A maioria de nós até sabe que não deve ingressar em toda discussão, mas basta sermos atingidos em nossas mais profundas convicções para comprar uma briga – e depois sentir as faces corarem de constrangimento.

Além disso, as palavras são um bem muito precioso para gastar assim, de qualquer maneira. “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, disse Exupéry. Pois eu digo o seguinte: Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que enuncias. As palavras têm poder e todo poder exige uma grande responsabilidade. Por isso, convém economizar na saliva, pensar duas vezes, pois há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.

O segredo, para evitar a ressaca moral, talvez seja opinar moderada e eventualmente, quando não abster-se de discussões mais acaloradas. A cada um bastam suas próprias convicções, afinal. E que fique claro: não é uma coluna jornalística que me habilita a dizer o que quero, doa a quem doer. Como também não é a tribuna, o púlpito, o palanque, a cabeceira de uma mesa, a chave do carro. A opinião só não entorpece mais que o prisma do opinante.

“Opina?”, pergunta a consciência durante a entrevista; “Socialmente", respondo com a maior cara de pau do mundo.


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