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O segredo da lista

Por George dos Santos Pacheco
31/05/23 - 08:23

“A vida é muito curta para ser pequena.” (Benjamin Disraeli)

Estávamos na barbearia do França, numa dessas tardes de quinta-feira. O estabelecimento do dito carmense estava sempre cheio, e não é de se estranhar, sabendo que o camarada, sujeito alto, de movimentos meticulosos, e olhos pequenos, é sacana e bem-humorado que só ele, dono de um extenso repertório de conversa. Quando a cadeira vagou, logo chamou o Ferreira, que embora houvesse chegado na fila bem depois da gente, possuía precedência para tal. Não procure entender, terráqueo.

– E aí, chefe? Na frente franjinha? – perguntou trocista, enquanto esticava a capa sobre o cliente. A gargalhada foi algo natural e espontânea, no exato momento em que o mais velho de nós entrava na barbearia. “Opa, opa!”, cumprimentou num sorriso curioso e caminhar arrastado.

– Sai fora! – respondeu o cliente na cadeira, num tom acanhado, mas sorridente. – Faz aquele... como é mesmo o nome? “Dégradé"... “Hum, dégradé!”, alguém debochou; outra gargalhada.

– Fabinho, você vai fazer dégradé também ou na frente franjinha? – perguntei, guardando o celular no bolso. Você entende, não é cara pálida? Algumas ideias precisam ser anotadas com urgência para depois se tornarem hebdomadárias crônicas.

– Nada, o corte do Fabinho sai pela metade do preço! – interveio o França, num sorriso preso, perpetuando a brincadeira. Viram o porquê da concorrência à barbearia?

– Dégradé? Não, hoje não. Eu sou daquela época que bacana era o cabelo cobrir as orelhas. Meu pai chamava isso aí de “corte à escovinha". Mas... quem sabe? Talvez seja uma das coisas que eu faça antes de morrer. – respondeu, com deboche.

– Antes de morrer? Caraca. França, o que você quer fazer antes de morrer? Não vale nada erótico (que a crônica é séria)! – perguntei de imediato, para provocar mais piadas, enquanto ele cortava repetidamente o ar com a tesoura, numa espécie de tique profissional. Uma buzina na rua se arrastou por alguns metros antes que ele pudesse falar.

– Sei lá, cacetas. Bungee Jump? – respondeu, com um sorriso levemente constrangido.

– Eu vi um filme sobre isso. Era com aquele... Morgan Freeman. E o Jack Nicholson – aquele que fez o Coringa. Os dois velhos estão num hospital e decidem elaborar uma lista com as coisas que querem fazer antes de morrer. – comentou o Ferreira, encarando o espelho, enquanto as pontas de alguns fios já lhe caíam sobre o rosto.

– O Fabinho falou aqui que quer ver o Vasco campeão… – acrescentei, para implicar. O colega se inflamou na hora.

– Ah, tá! Engraçadinho! E você? Ahn? – replicou ele, desafiador. Putzgrila.

– Morrer? Deus me livre morrer! – respondi corando. Eu também tinha visto o filme. E vocês sabem, jamais nutri uma consideração muito especial pelo assunto. Não se trata de algo do qual me orgulhe, tampouco configura demérito. Não devo ser o único, enfim.

– Ô, bonitão. Você acha que vai ficar aqui pra semente, é? – comentou o outro Fábio (aquele que chamávamos de “leão-careca-do-pica-pau”), sentado do outro lado. O vento soprou algumas folhas na calçada em frente e eu desviei o olhar pra esse.

– Claro que não! – sorri, tentando desconversar. Eu já disse, né? Falar sobre morte me incomoda (a minha morte, reste claro) e, além disso, fiquei acanhado sobre a minha lista. O que eu tinha eram desejos bobos, quiçá até infantis. Quem nunca fez algo parecido, ainda que inconscientemente? Quando eu era adolescente eu quis tocar numa banda de rock, mas agora, será que faz sentido? Eu gostaria de pilotar motos, mas tinha um medo terrível. Já havia subido o Caledônia, escrevera livros, casei, tenho esposa e filhos, plantei uma árvore (um limoeiro conta como árvore?). Sentia-me completo.

– Boa… Bungee Jump. Vou querer também. – murmurou o Ferreira, em seu característico tom de voz baixo e cadenciado.

– Eu quero ir ao Jalapão… – disse o Fabinho, contemplando, um ponto qualquer na parede – e olha que o cara é bastante viajado. Um caminhão de carga começou a manobrar para desembarcar material em uma loja ao lado; motor e apito de ré, incrivelmente sonoros, abafavam um pouco sua voz. Tomei coragem e resolvi falar.

– Eu queria ter um Fusca, apresentar um programa no radio, pichar um muro com uma poesia, talvez comer um pastel lá na Pastelmania...– enumerei, reflexivo. Pensei em acrescentar “comemorar o aniversário de 81 anos da Dona Maria”, mas achei que soaria romântico demais – e aí é que a galera ia sacanear mesmo. Mas que fique registrado nos autos, Dona Maria!

– Peraí, Pacheco! Pensa mais alto aí! – recomendou o Ferreira, quando a cadeira foi levantada por pedaladas do França. O Leão concordou com acenos de cabeça e murmúrios afirmativos.

– Cara, Bungee Jump nem pensar, que eu tenho medo de altura; viajar é legal, mas o Jalapão é muito longe, fico satisfeito em conhecer o Estado do Rio. Enfim, dá pra ser feliz com coisas menores. Além do mais, o segredo da lista é ir acrescentando cada vez mais coisas, mesmo que pareçam muito fáceis (ou muito difíceis) … – argumentei com um sorriso encabulado. “O segredo é nunca parar de sonhar”, pensei.

– Também nunca lanchei na Pastelmania… – refletiu o barbeiro, sob o protesto de outros dois, risadinhas, piadas. “Quem nunca esteve na Pastelmania?” Ora, cacetas. Só ali eram dois.

A partir daquele momento, o bate papo desviou para rumos diferentes. Assim como a vida. É natural, não é? Digo, às vezes não dá pra evitar. A gente só não pode deixar que nossos sonhos fiquem para trás. Pode ser uma viagem ao Jalapão, saltar de paraquedas, esquiar em Bariloche. É como disse Neruda: “Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca ideias.”. A vida também é assim, penso eu. Começa com uma letra maiúscula, termina com um ponto final, mas no meio colocamos nossas ideias, sonhos e desejos. Isso lhe parece romântico demais, reflexivo leitor? “O segredo é nunca parar de sonhar”, pensei, novamente, recostando a cabeça na parede, enquanto esperava minha vez chegar.


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