O brilho eterno de uma mente sem lembranças
O incêndio no Museu Nacional foi uma tragédia simbólica:na semana da independência, a casa de D. Pedro em chamas. Em ano de eleição, nosso passado reduzido a cinzas. É o emblema do descaso de nossos governantes com a cultura e a pesquisa. Na era da pós-verdade, o registro dos fatos históricos se faz cada vez mais imprescindível. Ouvi, poucos dias antes do incêndio, um candidato à Presidência da República dizer que os portugueses nunca pisaram na África e que o passado já passou, ele quer saber é daqui pra frente... Algo como “quem vive de passado é museu”. A maior prova de que isso é uma inverdade é o incêndio: museus precisam de subsídios para existirem. O passado é sua matéria-prima, mas não é o suficiente para sustentar as paredes de pé. Para tornar esse dito popular um pouco mais justo, diria que quem vive de museu é o passado. Ele só vive nos museus, nos livros e na memória daqueles que o vivenciaram. Mas e aqueles que não o viveram? Como podem saber sobre sua história e ancestralidade sem livros e museus? É preciso não esquecer. E, 15 dias depois dessa tragédia, parece que já a esquecemos...
Por isso resolvi escrever agora: porque é preciso não esquecer. Transcrevo aqui o poema que Matheus Mendes, filósofo, poeta, professor e meu amigo, escreveu:
Queima Nacional
Canta a Deusa às Musas invertidas
A cólera de Lethes, a moderna filha:
Museográfica flama, ars do passado,
Da ruína da história, um esquecimento
Da Memória. Musa chorada sob fina chuva
Em pira melancólica que fabrica a imagem
Nua de um edifício sedimentado pelo barro
Movente da chama. Se chamado o Verbo, a Ira
De Ares, mártir das mínimas e simplórias
Tragédias humanas. Mítica ode que Luzia
Em final silencioso os estalidos consumidos
À cova rasa desse segundo genocídio,
A convivência com o passado (um estampido)
Por cinzas soterrado, caveira de granito
Naufragada no fogo do sufoco. Se esqueço,
Já não sabemos. Opacos, se não lembramos
A dimensão da perda, a queda de Alexandria
Que retumba pelas negras paredes condenadas
Como as línguas novamente jamais evocadas,
Se algum dia pelos sambaquis já ouvidas,
Seus gritos enfurecem a Deusa morticínia!
Matheus Mendes
Na mitologia grega, Lethes é uma deusa, a personificação do esquecimento, cujo nome foi dado ao rio onde as almas mergulhavam ao adentrar o reino profundo dos mortos. Neste poema, as musas evocadas não são aquelas de Homero, são musas invertidas. A Deusa canta às musas do silêncio (porque o esquecimento emudece). Ela canta a cólera de Lethes, filha de Eris, a deusa da discórdia e de todos os males. Lethes é a “moderna filha” de todos os males: é o esquecimento.
O poema se desenvolve como se descrevesse como ela perdeu a memória: o incêndio, “museográfica flama”. Matheus faz um jogo entre o nome dado à mulher de 11 mil anos, Luzia, e o verbo luzir: “Mítica ode que Luzia/Em final silencioso os estalidos consumidos/À cova rasa desse segundo genocídio”. Luzia é o nome da Santa protetora dos olhos e da visão, o oposto à cegueira do esquecimento. E qual seria o primeiro genocídio? E por que a palavra genocídio se aplicaria nesse contexto? Porque a memória é humana e é coletiva. O incêndio no Museu Nacional foi um genocídio, assim como o incêndio na Biblioteca de Alexandria, por isso é o segundo.
De todas as ricas imagens do poema de Matheus Mendes, a que ficou em mim foi Lethes. E me fez lembrar do fragmento de outro poema, de Alexander Pope. Para concluir este texto, deixo-o aqui:
Feliz é o destino da
inocente vestal!
Esquecendo o mundo,
e sendo por ele esquecida.
Brilho eterno de uma
mente sem lembranças.
Toda prece é ouvida,
toda graça se alcança.
Alexander Pope
Neste setembro sombrio, deixo aqui a minha prece: que este passado incendiado não seja esquecido e nos sirva de lição para que outros passados sobrevivam. Este é o papel dos museus.
O Portal Multiplix não endossa, aprova ou reprova as opiniões e posições expressadas nas colunas. Os textos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores independentes.
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