Quem tem boca vaia Roma!
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"Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento." (Clarice Lispector)
Esta crônica é cuspida e escarrada àquela outra, o título, ao menos. "Cuspida e escarrada"? Elementar, meu caro leitor. A outra, "Quem tem boca vai a Roma!" gerou um intenso debate nas redes, tanto pelo conteúdo, quanto pelo título. E a discussão não poderia terminar ali.
Acontece que o título foi deliberadamente escolhido para brincar com os múltiplos significados que a expressão possui na última flor do Lácio, nossa respeitável Língua Portuguesa. Em determinado momento, ao ser criticado pela esposa por planejar uma viagem a Roma, o personagem menciona a expressão, escrita com o "vai a", indicando que ele iria para Roma de qualquer forma, independentemente de dinheiro ou qualquer outra coisa. Mas será que a intenção dele não seria ironizar a crítica da esposa com o "vaia"? Aí é que está.
O debate que se seguiu discutia qual forma da expressão era a correta e, por fim, não se chegou a nenhuma conclusão. Conforme relatos, antes do século XVIII, a expressão era "vaia" e remonta à Idade Média, transmitindo a ideia de que quem tem voz protesta até contra Roma, sendo encontrada em coleções de provérbios portugueses e vocabulários. Contudo, de acordo com o Prof. Pasquale, esse ditado está quase certo, já que o original em italiano é "Chi ha (la) lingua arriva a Roma" ou algo como "Quem tem língua chega a Roma". Inclusive, essa versão tem correspondência em muitos outros idiomas: em espanhol (Preguntado si va a Roma), em francês (Qui langue a Roma, à Roma se va), e até num português mais antigo (Quem língua tem, a Roma vai e vem).
Por fim, há defensores de ambas as versões, assim como para outros ditados e expressões. O "cuspido e escarrado" seria uma corruptela de "esculpido em Carrara", ou seja, cinzelado pelas mãos de um artista no mármore nobre da região italiana de Carrara. Há também a versão "esculpido e encarnado". No entanto, há quem defenda que o termo estaria, de fato, relacionado ao cuspe, com equivalência também em outras línguas: spit and image ("cuspe e imagem"), por exemplo.
Engana-se quem pensa que vim aqui para discutir quem está certo, qual expressão é definitivamente correta, ou qualquer outra coisa do tipo; o papel do cronista é apenas provocar a reflexão. E basta. Parafraseando o Chacrinha, eu vim pra confundir e não para explicar. Particularmente, vou manter em meu vocabulário as expressões consagradas pelo uso, sem me preocupar com esses pormenores polêmicos. Até porque dizer "esculpido em Carrara" soa muito eloquente, mas também um pouco pedante. Melhor ficar com "cuspido e escarrado" ou "cagado e cuspido", vai por mim. Tanto faz.
Agora veja, curiosíssimo terráqueo: não se trata dos significados propriamente ditos, mas da falta de uniformidade de pensamento da nossa tão evoluída sociedade. Essa conversa toda serve apenas para ilustrar que o tupiniquim não concorda com quase nada. "Cada um com seu cada um". O que importa no uso da língua falada e escrita é a intenção do interlocutor, não é mesmo? O indivíduo usa a expressão que quiser, nos contextos que achar conveniente. Na verdade, o que chama a atenção é que, na maioria das vezes, existem ardorosos paladinos da causa A e da causa B, promovendo suas opiniões com um fervor quase religioso, seja nos esportes, na política ou até mesmo na amada e venerada Língua Portuguesa. Salve, salve! E, ao final, fica a impressão de que estamos sempre divididos, se não por uma coisa, por outra. Diversidade de opiniões é algo, extremismo ideológico é outra história.
De fato, sempre haverá alguém que concorda com o parlapatório do cronista, e outro alguém que discorda; um dirá que é seis, outro dirá que é nove. Está tudo bem, vivemos em um país livre, meu senhor. Concordemos, ao menos, em uma coisa: quem tem boca vai a Roma, caça com gato, lava roupa suja em casa… faz o que bem entender.
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