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Reações Adversas

“Onde abundam as dores brotam os licores.” (Sigmund Freud)

Por George dos Santos Pacheco
24/11/21 - 12:30

Desde a alvorada de nossos tempos que os homens buscam um bálsamo para suas aflições. A papoula era usada nas civilizações da Mesopotâmia e do Egito; na Idade Média, era o vinho a panaceia, até que, na Renascença, Paracelso, também responsável por deslindar o efeito anestésico do éter, reintroduziu o uso médico do ópio na Europa. Em 1820, a morfina já era comercializada em larga escala para o tratamento sintomático da dor e o clorofórmio foi sintetizado por volta de 1831. Isso só prova que, de lá para cá, nos tornamos especialistas em dor. Opa, peraí. Em dor não, nos infalíveis e indispensáveis analgésicos.

“Dinheiro, cartão ou Pix? Se for cartão, por proximidade ou senha, ok?”, perguntou o cara do caixa. E eu ali, bestificado com a quantidade de aspirinas, pílulas e comprimidos no balcão, quase misturada às balinhas mentoladas e chocolates. “Te esconjuro!”.

A verdade é que, embora haja uma unidade ou outra de masoquista por aí, ninguém gosta de padecer, obviamente. Contudo, a facilidade com que se encontra remédio para dor nos tornou ainda mais intransigentes à ela e não o contrário. Falta pouco ter um baleiro próximo ao caixa, cheio de pílulas coloridas. “Me dá cem gramas desse negócio aqui, moço?”.

Não me toque pedras, dolorido terráqueo. É inegável, eu sei, que a evolução dos fármacos garantiu grandes avanços para a prática da medicina e para o conforto da população em geral, porém, o uso dos medicamentos e sobretudo, dos anódinos, se banalizou de tal maneira que passou a moldar o padrão comportamental da sociedade, como tudo aquilo que se torna vulgar. É uma reação adversa.

Ah, você não acredita nisso? Essas ditas “facilidades” nos corrompem, cara pálida. Os plásticos tornaram tudo e todos descartáveis, em diversos círculos sociais, nos relacionamentos, nos empregos e até nos investimentos financeiros; os eletrônicos transformaram-nos em preguiçosos e inconvenientes; as redes sociais, em bisbilhoteiros, falastrões e superficiais. Cartões de crédito em gastadores compulsivos. Por fim e não menos pior, todo este comércio balsâmico fez-nos ainda mais intolerantes com tudo, ainda que isso não esteja alertado na bula. E como se não nos bastasse o exagero de medicamentos, ainda fazemos dessas e muitas outras coisas (plásticos, cartões de crédito, redes sociais...) também um alento para nossos sofrimentos – quaisquer que sejam eles.

O mundo não é mais como era antigamente. Os homens de hoje não são os mesmos de outrora; os filhos, os pais, as famílias… não são os mesmos de antes. Por conta dessa aversão moderna e contemporânea à dor, gerações estão sendo criadas privadas de sacrifícios extremamente necessários para seu crescimento intelectual e psicológico. A dor não é inimiga, nunca foi.

O Senhor que me perdoe pelas missas que faltei. Mas naqueles pentelhésimos de segundo antes de pagar a conta da farmácia, enquanto observava aquele monte de -flexes, -cetamóis, -sulidas, e -caínas da vida, recordei quando, certa feita, o padre se afastou levemente da santa leitura do dia, para usar de uma parábola moderna para subsidiar o sermão para a assembleia. Contava que uma criança presenciou uma borboleta saindo do casulo. Coitada da borboleta! Com extrema dificuldade ela se esquivava de um lado para o outro, as asas murchinhas, o casulo sufocando-a. A criança, com pena, rasgou parte do invólucro que a manteve em segurança por tanto tempo, a fim de ajudá-la a sair logo daquele suplício. “Ah, perdoai, Senhor! Ela não sabe o que faz.”, disse o pároco. O aperto do casulo era justo e necessário para que o “sangue” da borboleta fosse direcionado para as asas, dando-lhe firmeza nas mesmas para que ela enfim voasse. E a ajuda da criança fez com que isso nunca acontecesse. A borboleta jamais voou.

Concluído este parêntese oportuno, fica patente o que estamos fazendo por causa dessa “intolerância à dor”. É desse jeito que estamos criando nossos filhos. Bem debaixo das asas, por medo de que sofram, para “não passarem pelas mesmas coisas que passamos". Vê bem, cara pálida. Buda disse que a vida é uma dor, mas outro homem (também mais sábio que eu) disse que ostras saudáveis não produzem pérolas – ou que mares tranquilos não fazem bons marinheiros. Não sei bem se foi a mesma pessoa. Não importa. Ajuda demais atrapalha. Facilidade em excesso corrompe.

Pronto. O moço do caixa separava o troco. Olhei para minha sacola com os produtos. Será que eu precisava mesmo daquilo?

Suspirei. Definitivamente, é necessário reaprender a lidar com a dor, com os obstáculos, com os sacrifícios, afinal, somos capazes de suportar muito mais do que imaginamos. Além disso, vale a pena ser mais exegeta quando o mundo oferecer uma mãozinha. Fosse este prurido crítico e reflexivo algum tipo de reação adversa, eu não poderia saber ao certo. Mas de uma coisa tinha certeza: eu não precisava de nenhum remédio para isso, ainda que apenas uma crônica.


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