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O mocinho morre no final

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Por George dos Santos Pacheco
23/11/22 - 12:14

“Tudo é símbolo. E sábio é quem lê em tudo.” (Plotino)

“Em que mundo nós estamos!”, diria minha tia. No mesmo mundão de sempre, tia. É fato que as aparências enganam, mas na sociedade contemporânea, aí é que não dá mais para saber quem as pessoas são. Não, não, não. Ahn, ahn. É claro que isso nunca foi possível, mas na atualidade isso tem assumido proporções exageradíssimas, principalmente porque a maioria de nós, em nosso cotidiano, usa de alegorias e artifícios a fim de causar uma deliberada impressão. Ah, quem nunca escolheu uma roupa para parecer mais sério ou mais descolado? Quem nunca lançou mão de um vocabulário mais rebuscado, aforismos intelectuais para ter mais credibilidade (os vernizes de erudição que os políticos tanto adoram)?

O problema disso é que a prática banaliza (e corrompe e deprava e distorce) os símbolos, os distintivos, os baluartes. O branco já não é mais o mesmo, o verde e amarelo, também não. Os sorrisos, as estrelas, as pombas, os corações, as caveiras, os “joinhas”… a lista não para de crescer. Nem mesmo a nudez ficou de fora. E esgotadas, as instituições buscam outros emblemas, outros obeliscos que tenham validade, até que, inevitavelmente, os esvaziemos outra vez.

Pois então. A gente sempre se surpreende, cara pálida. O terráqueo tem uma programação de fábrica para encontrar sentido em tudo, mas a verdade é que nem tudo faz sentido e nem precisa fazer. Contudo, como estamos condicionados a isso, quando não há reciprocidade entre a expectativa e o resultado, surge em todo o seu esplendor e confusão, ela: a surpresa.

Nova Friburgo, Praça Getúlio Vargas. Final de uma manhã de Primavera, clima agradável, de temperatura amena, sol entre nuvens. O fluxo de carros era contínuo, o movimento de pessoas na Estação Livre era grande, jovens, crianças, homens e mulheres. Eis que o filho do Seu Jorge aguardava o ônibus sob o abrigo e percebeu um senhor próximo que fazia o mesmo. Enquanto o Pachecão riscava o dedo no celular, verificando uma eventual mensagem da Dona Maria, o senhor buscava o coletivo que o levaria a seu destino, inclinando o pescoço para a rua, segurando firmemente um livro na mão direita.

Cara… que maneiro. Coisa mais incomum de se ver é alguém com um livro nas mãos por aí. É raro, raríssimo. Estamos todos, atualmente, mirando as telas dos celulares, absortos nos fones de ouvido, num estado quase catatônico… ninguém mais dá a mínima para o outro. Ninguém puxa uma conversa, que seja. Poucos leem jornais, menos ainda se dedicam à leitura de livros por aí. Então, estar com um livro nas mãos em pleno ponto de ônibus, nos dias de hoje, é muita ostentação.

– Está gostando da leitura? – perguntei, num sorriso simpático, ao me aproximar.

– Como é? – redarguiu o senhor, virando-se momentaneamente para mim, com o olhar intrigado. Deve ter pensado que se tratava de algum ambulante oferecendo um produto.

– Perguntei se está gostando do livro. – respondi, apontando o dedo para sua mão direita, pingente com a publicação firme entre o polegar e os demais colegas. Seu mindinho, Seu vizinho, Pai de todos, e Fura bolo.

– Ah, não. Não li uma palavra sequer. – respondeu enfaticamente, baixando o olhar para o livro e depois virando o rosto outra vez para a rua, ansioso por seu ônibus. Um deles encostou sem passageiros e trocou de motorista.

– Caramba, acabou de pegá-lo? – continuei a conversa. Além de ter achado muito bacana o comportamento, estava curioso pelo livro, principalmente porque alguns detalhes da capa eram-me muito familiares.

– Não, não! É que... descobri recentemente… Err… eu descobri que tenho Parkinson. Melhor Parkinson que Alzheimer, não é? – explicou-me, tornando a me olhar, com um sorriso um pouco sem graça, os pés de galinha contorcendo-se nos cantos dos olhos claros.

– E o que o livro tem a ver com isso? – perguntei intrigado. Outro ônibus encostou na plataforma, desembarcando meia dúzia de gente. Na calçada do outro lado um locutor fazia a propaganda de produtos de uma loja. “Somente trinta e nove e noventa e nove! Vem para cá freguesa!”.

– É que… bem. Eu disse a meu médico que tinha vergonha do meu tremor na mão. Ele me recomendou que sempre que eu fosse sair, carregasse algum objeto, um guarda chuva, um livro, qualquer coisa, para que eu mantivesse a mão firme e disfarçasse os tremores. E cá estou eu. Nunca gostei de ler. Ler é chato... – explicou-me com requinte de detalhes, movendo o olhar de mim para a rua e novamente para mim. E lá se foi outro símbolo.

– Ah, entendo. – disse num suspiro frustrado. Em que mundo nós estamos, tia?

– Você já leu? – perguntou o senhor, virando a capa do livro em minha direção, o perfil de um gato preto, um olho amarelo e inquisitivo estampado. Eu sabia que era familiar!

– Ah, li sim. O mocinho morre no final. – respondi após um muxoxo, num sorriso melancólico, quando percebemos que o seu ônibus finalmente chegara.

– Ah... agora é que não leio mesmo! Foi um prazer, hein! – disse ele, caminhando em direção ao ônibus, com certa dificuldade – e eu ali, meneando a cabeça, com os lábios franzidos, a maior cara de bocó. Embarcando no ônibus, o senhor mal sabia que acabava de ofender um orgulhoso literato.

Como assim “ofendido”, minha senhora? Aquele senhor tão simpático e sua paradoxal aversão a literatura, foi mais um caso sutil da depravação das insígnias e das instituições, apesar de muito nobre a intenção, reconheço. O livro reduzido a um mero instrumento terapêutico.

Pois então. Não dá mais para acreditar nos símbolos, vê? Muito menos desvendar o gênero humano. Não dá. Não , não, não. Ahn, ahn.


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