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Onde as botas perderam Judas?

Por George dos Santos Pacheco
13/04/22 - 09:44

“Os tempos primitivos são líricos, os tempos antigos são épicos, os tempos modernos são dramáticos.” (Victor Hugo)

Ah, no meu tempo é que era bom. Naquela época a gente ficava feliz só de comer um pacotinho de jujuba. Bom também era ouvir o som do baleiro na venda enquanto papai comprava Guaraná Caledônia – sim nós tínhamos um guaraná docíssimo, senhor das festas infantis por muitas décadas. Naquela época o tempo passava mais devagar. Medo a gente tinha de pegar caxumba e descer para o saco. Medo a gente tinha de ralar o joelho e ter de passar mertiolate porque ardia pra cacetas. Medo a gente tinha de deixar a sandália emborcada. Curava-se soluço com uma bolinha de pano colada na testa usando cuspe. Tempos bons eram aqueles!

Mas as coisas vão mudando de maneira tão sutil... tão devagarzinho... que mal se percebe. Os valores vão se perdendo, os conceitos também. Quando se vê, está tudo tão diferente... Chego a me sentir uma espécie de Marty McFly estranhando o futuro. Se vocês ainda não se sentiram assim, não perdem por esperar. Sua hora chegará também.

Vejam, terráqueos, não sei se me faço entender, mas procuro explicar-me. Em tempos em que as redes sociais se tornaram o ambiente perfeito para a lavagem de roupa suja, não há mais espaço para a malhação de Judas, por exemplo. Alguém aí lembra disso? Na minha época, o pessoal passava a Semana Santa montando os bonecos para pendurar em algum poste, na madrugada do Sábado de Aleluia. A figura tem referência em Judas, o apóstolo traidor de Jesus. Já de manhã, bem cedinho, a galera se reunia com porretes na mão e descia o cacete em Judas, que terminava todo destroçado com o enchimento, composto basicamente de restos de confecção, espalhados pela calçada. Acontece que a graça não estava exatamente nisso: o personagem era caracterizado em alguma pessoa com a qual a comunidade tinha rusga, algum vizinho ou político, um vereador talvez. E aí o recado estava dado. A coça que se dava em Judas por ter traído Jesus era dada na tal representação da pessoa, e o burburinho se espalhava no mesmo dia. “Viu? Fizeram um Judas da Dona Fulana, aquela fofoqueira”.

A primeira vez que eu vi um era de um motorista de ônibus, morador do bairro. O cara era de tal maneira grosseiro que o pessoal fez só de implicância. Acho até que teve repeteco no ano seguinte. Ele deixou de ser estúpido? Claro que não. Nem a galera bateu nele de verdade. Mas o desabafo estava feito e era divertido tanto pra quem participava da malhação, quanto pra quem assistia. Isso sem contar o anonimato, porque se fazia questão de esconder a responsabilidade pela criação do boneco. Ninguém sabia quem era o pai da criança, ele simplesmente tinha aparecido ali no poste. Mas é como eu disse, os conceitos vão mudando. Hoje é mais fácil reclamar e ofender pelas redes sociais – e sem a menor questão de passar despercebido, o pessoal quer mais é ser reconhecido pelo feito.

Hoje, o presidente, o prefeito e uma meia dúzia de vereadores encarnariam Judas, com certeza – além, é claro, do desprezível, famigerado, infame e pernicioso coronavírus. Na verdade, eu não sei bem como o costume se perdeu, quando, ou por que. A gente sabe de muita pouca coisa, hoje em dia, apesar de estarmos em plena Era da Informação. É tudo muito sutil, repito. E assim as botas vão perdendo Judas. Todos os dias vamos deixando para trás um monte de comportamentos saudáveis e ninguém se importa. Malhação de Judas? Não, não se trata disso, amigos leitores. Se trata de dar bom dia ao vizinho, de pedir a bênção aos pais, de se desculpar, de agradecer, de dar atenção ao interlocutor em vez de respondê-lo olhando uma tela de celular. Após um longo período de isolamento social dá pra pensar em quanto se perdeu e em quanto estamos dispostos a recuperar. Mas foi-se o tempo em que se queria recuperar alguma coisa. Tempos bons eram aqueles!


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