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O animal conceitual

⁣⁣

Por George dos Santos Pacheco
19/01/22 - 10:23

“As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.” (Friedrich Nietzsche)

Convenhamos: todo mundo já se deparou com uma pergunta difícil de responder. Onde você estava até esta hora? Cadê aquele pedaço de bolo que eu guardei? Quem é essa bruaca aí do teu lado? Uma vírgula fora do lugar compromete toda a inteligibilidade da resposta. Nessas horas, o cérebro aumenta o giro e a ventoinha arma, calculando entre infinitas possibilidades, as mais adequadas para satisfazer a necessidade do nosso curioso interlocutor.

Decifra-me ou te devoro.

Esses dias, na mesa do jantar, numa daquelas conversas que surgem do nada e para o nada vão também, o garoto mais velho me perguntou qual era minha carne preferida num churrasco. Para você, sapientíssimo terráqueo, talvez não haja mistério algum num questionamento desses, mas para mim foi como o enigma da esfinge, a última pergunta do Silvio Santos. Ora, como estabelecer uma preferência, uma primazia num negócio desses? É o tipo de pergunta sem resposta, como naqueles paradoxos gregos em que a resolução é a antítese do sentido da própria questão.

Churrasco é churrasco, não há como haver predileção por qualquer coisa; eu gosto até da azia a posteriori. Dona Maria, percebendo o hiato, reformulou a pergunta: o que não pode faltar num churrasco? Parece que ficou mais fácil – pero no mucho.

Já aconteceu com vocês, salivantes terráqueos, de conhecerem muito bem a resposta, mas não saberem exatamente como responder? Foi isso que aconteceu comigo. Como dar cabo de uma indagação tão pertinente e fazê-los compreender com clareza aquilo que eu pretendia dizer? Dada a expectativa da réplica, fechei os olhos e raciocinei em pentelhésimos de segundos como processar a informação mais adequadamente para eles. Suspirei e prossegui:

“Em minha opinião, churrasco deve ter carne. Se não tiver carne, pode ser qualquer coisa, menos churrasco. Daí podemos acrescentar a linguiça toscana, e em seguida asa de frango ou drumete, que vão compor a base da refeição. A partir daí, tudo é lucro: coração de frango, pão com maionese temperada, queijo coalho, o que a mente inventar”.

Concluída minha escrupulosa exegese, deram-se por satisfeitos (não sem um discreto sorriso de mofa) e também eu, por conseguir transmitir o que desejava. Mas eu estava certo? Acredito que sim, mas há controvérsias.

Minha explanação quase acadêmica, fazia parte do ideal que eu faço de um churrasco, assim como tantos outros ideais: de família, de emprego, de música, de relacionamentos, parará e pereré. É um conceito.

O conceito nada mais é que fruto da experiência sociológica dos sujeitos, vivência que obviamente perpassa diversos círculos: familiares, políticos e até religiosos. A formação do conceito determina dessa maneira, a visão de mundo de cada um, afastando-se de juízos de valor como bonito ou feio, falso ou verdadeiro, certo ou errado, associando-se mais ao que conhecemos vulgarmente por ponto de vista.

O ser humano, animal conceitual por natureza, relaciona-se com seus conceitos com conspícua lealdade, esquecendo-se (ou fazendo questão de esquecer) que não se tratam de verdades absolutas, mas faces de uma mesma moeda. Por conta disso surge uma série de bizarrices comportamentais que beiram a infantilidade, com consequências ainda mais grotescas. A maioria de nossas discussões diárias, concorde ou não, querido leitor, tem como objeto a defesa estoica e irrestrita de nossos julgamentos, teorias e pontos de vista – muitas vezes baseados em sofismas, falsas premissas e erros de interpretação.

Obstinado terráqueo, o que o conceito tem de tão importante, tão mágico e tão especial para o defendermos com tamanho penhor, diante do padre, da esposa, e até mesmo do desconhecido na fila da padaria?

Não há dúvida que o bom funcionamento da sociedade (assim como de qualquer relação) depende do respeito mútuo aos conceitos. Quantos debates infrutíferos teriam sido evitados se não buscássemos impô-los a todo custo como se fossem axiomas, irrefutáveis? Quantos casamentos não teriam se desfeito sob a desculpa esfarrapada da moderna “incompatibilidade de gênios”? Quantas guerras teriam sido evitadas?

Essas são questões que não sei exatamente como responder, confesso. Não sozinho.

Até quando, geniosos terráqueos, seremos imaturos a ponto de ofuscar e eclipsar quem quer que seja com nossa vã filosofia, nossa verdade particular, pessoal e intransferível? Até quando?

Decifra-me ou te devoro.


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