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A gorda

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Por Rachel Rabello
15/07/19 - 16:39

Isabela Figueiredo é moçambicana, mas vive desde 1975 em Portugal. Professora e escritora, A gorda (Todavia, 2016) é seu primeiro romance.

Escrito em primeira pessoa e tendo pontos de encontro com a biografia da autora, é natural que os leitores façam logo a relação entre Maria Luísa, a narradora-personagem, e Isabela, sua autora. Ambas nasceram em Moçambique e passaram a adolescência em Portugal, longe dos pais, onde também construíram a vida adulta. Ambas eram gordas e fizeram a gastrectomia (cirurgia de redução do estômago). No entanto, se a autora não definiu este trabalho como autoficção, eu também não o farei por receio de que isso reduza seus méritos diante de leitores “patriarcais” – isto é, aqueles que homens têm temas universais, mulheres temas íntimos e biográficos. Embora seja difícil ignorar a advertência colocada ao início do livro – “Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade” – o real não é necessariamente oposto à ficção... e aí a discussão começa a não caber nesta pequena resenha.

Como alguém que sempre conviveu com a gula, a compulsão alimentar, e o excesso de peso, destacou-se para mim o fato de que, embora seja um livro que denuncie a gordofobia, não se trata de apologia à gordice. Foi movida por uma preocupação com a saúde – física e emocional – que Maria Luísa optou pela cirurgia de redução do estômago. Tendo o pai morrido vítima de um acidente vascular cerebral, a personagem decidiu pelo tratamento mais drástico. Algo que a impedisse de comer, já que força de vontade por si só não dava conta do recado. Sua obesidade era uma questão genética, não apenas comportamental – como, aliás, é o caso de muitos gordos. Tanto é que, embora tenha emagrecido 40 kg, Maria Luísa não ficou magra, não nos padrões estabelecidos por nossa sociedade, mas ficou com um peso dentro dos limites seguros para a saúde. Entretanto, se não há apologia à obesidade, tampouco há à cirurgia. A narradora descreve o procedimento como algo extremamente doloroso, cujas consequências permanecem por toda vida. Maria Luísa jamais poderia comer como uma pessoa dita “normal”:

Com a gastrectomia deixei de conseguir comer. Bebia caldo, leite e sumos. Sentia doer o corpo e a mente. Sentia fome profunda, mas tinham-me cortado metade do estômago e o que restava era uma ferida. Nos primeiros meses perdi força e cabelo, e caminhava lentamente, adaptando-me. [...] comecei a ficar leve, quase a levantar voo, como não me sentia desde a infância. [...] Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. (p. 17)

Mas se o livro demonstra o lado genético da obesidade, não deixa de descrever o lado psicológico e emocional. Não são raras as vezes em que Maria Luísa descreve uma fome que nenhum pão ou doce poderia saciar, e da qual, no entanto, só muitos pães e doces conseguiam distraí-la. Como no trecho abaixo:

Digo que a minha fome desse tempo nasceu no estômago, no centro de mim, mas nunca saberei ao certo de onde veio. Comprimia-o, pontapeava-o. era uma dor que não matava, tal como a saudade de alguém que nos morre. Engolia os alimentos depressa e sem os mastigar. Sentia-lhes o delicioso paladar rápido [...] O monstro da fome é um grande amigo quando está saciado. Sinto-me consolada. Se não, vai-me espetando no estômago o seu ferrão, para que não me esqueça. Não esqueço. Acalma-te, fome, eis as tuas oferendas! Pão com marmelada. Pão com manteiga. Pão com chouriço. (p. 111)

Toda a narrativa é percorrida por um humor autodepreciativo no qual, como gorda, muito me reconheci. Mas é também trespassada pela ideia de que a compulsão alimentar é um vício. Em diversos momentos Maria Luísa refere-se a si mesma como drogada, vendo a cirurgia do estômago como a única forma de reabilitação: mesmo que quisesse se drogar, não poderia, seria como se lhe “tirassem as veias” (p. 123). Eu concordo com ela, ao menos no meu caso, a compulsão alimentar é sim uma adição como outra qualquer.

O livro é dividido como se fosse uma casa: cada capítulo é um cômodo. Dentro dela, memórias da infância, com a tia; da vida adulta, com os pais. E também memórias de seu primeiro – e talvez único – amor, David. A questão do amor ganha especial relevância porque, como mulher gorda, o corpo é sempre limitador, seja para nós mesmas ou para os outros. Também é interessante notar a ambígua relação com sua melhor amiga na adolescência, a Tony, que era magra, linda e egoísta. Também a questão do desejo de ser mãe se faz presente ao final do livro.

Como podem ver, este é um romance que trata de muitas e muitas questões e sob um olhar singular na história da literatura: o olhar de uma mulher gorda. Recomendo a leitura aos gordinhos, aos magrinhos e, principalmente, àqueles que acham que só é gordo quem quer.


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