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A própria face

Por George dos Santos Pacheco
30/04/24 - 16:03

“Ah, que diferença entre o juízo que fazemos de nós e o que fazemos dos outros!” (Johann Goethe)

Havia sido uma noite formidável e perfeitamente normal. Chegara do trabalho com uma leve dor de cabeça, efeito de um dia desgastante. Tomou um banho rápido, a fim de jantar decentemente com a família, mas a vontade… ah, era passar uma hora inteira sob a ducha. Uma hora e meia, quem sabe? Ao dia fora reservado um calor miserável, beirando os quarenta graus, devido a uma insistente massa de ar quente que impedia a formação de chuvas.

Conversou à mesa sobre amenidades, ainda com os cabelos úmidos. Chamou a atenção dos garotos por uma inconveniência ou outra, combinou de buscar a esposa na volta do trabalho no dia seguinte. Assuntos do cotidiano. Uma planta de vaso estava com fungos, a torneira do tanque precisava de reparo, o IPVA tinha de ser pago. Nada demais. Logo estavam na cama, repreendendo as crianças por tagarelarem ainda àquela hora. Risinhos. Silêncio, enfim. Pegava cedo no escritório. Depois de um longo beijo apaixonado, abraçaram-se em concha e dormiram.

Dormitava inquieto e antes de pegar no sono, teve um sobressalto com um repentino trovão. Estranhamente, não chegou a chover.

Acordou sozinho na cama, com o sol sobre os olhos, cujas réstias penetravam petulantes pela janela veneziana. Ora! Estava se atrasando! Conferiu o relógio sobre a mesa de cabeceira. Cristo! Quase oito horas!

Levantou-se de um salto e dirigiu-se à suíte, urinando com urgência e descendo apressadamente as escadas, ainda descalço. O cheiro de comida fresca lhe invadia as narinas, a cada degrau, o estômago roncava. Uma canção dedilhada no violão tocava baixinho no rádio da cozinha. Mal percebeu o cumprimento das crianças sentadas no sofá da sala, retribuindo automaticamente, sem mirá-los, os olhos ainda embaçados de sono.

– Bom dia, amor! Eu já ia te chamar. Estou quase concluindo o café. – cumprimentou a mulher, de costas para ele, ocupada na preparação do desjejum.

– Err, bom dia. O que fez com… – retribuiu a saudação e já ia perguntar sobre seus cabelos quando foi obrigado a interromper, estupefato, no momento em que ela se virou. Opa, opa, opa… aquela não era sua esposa.

– O que foi, gatão? Está se sentindo bem? – perguntou ao se aproximar e dar um beijo estalado em seus lábios. Franziu o cenho confuso, paralisado em frente a mulher. Era uma completa desconhecida, exceto pelos trejeitos, a forma de falar e de se portar. Sentiu um arrepio percorrer a espinha e a face ruborizar.

– É alguma brincadeira, isso? – perguntou embasbacado, pondo as mãos na cintura. A esposa era morena, cabelos encaracolados e negros, corpo delineado… não aquela branquela. Mas que porra estava acontecendo? Tentou continuar a frase, mas a boca entreaberta era incapaz de articular algo compreensível. Nada fazia sentido.

– Do que você está falando, afinal? Anda logo, se apronte! Já vou por a mesa! – recomendou carregando os quitutes, enquanto ele a acompanhava com o olhar pasmo. Somente agora percebeu os garotos na sala. Também eles eram outros. Puta merda!

Sentiu a vista turvar. Estava delirando… um desvario dos mais sórdidos. Será que teria morrido e tudo isso não era uma espécie de alucinação post mortem em que ficaria preso enquanto estivesse no limbo ou por toda a eternidade? Na melhor das hipóteses, talvez ainda estivesse dormindo. Sim, sim. Um pesadelo muito realista.

– Fala sério, onde estão eles? Que brincadeira é essa? Eu… eu tenho que ir, vou me atrasar para o trabalho… – balbuciou intrigado e confuso. Aquelas pessoas não eram sua família e apesar de portarem-se exatamente iguais, como se fosse uma atuação perfeitamente decorada e ensaiada, aqueles que o interpretavam definitivamente eram outros, como se variantes de um universo paralelo. Já vira isso em filmes.

– Você está falando igual à sua mãe. Aliás, ela já ligou. Perguntou se vamos almoçar com eles amanhã. Eu falei que ia confirmar com você ainda. – disse a mulher voltando à cozinha para pegar o restante do material. – E que conversa é essa de trabalho? Hoje é sábado.

Aquilo tudo era muito estranho. Explicações possíveis e impossíveis, inimagináveis e insólitas pipocavam a todo instante em sua cabeça, como clarões de relâmpagos perdidos na escuridão de uma tempestade. Quem, neste mundo de meu Deus, imaginou acordar no meio de uma família completamente diferente? Talvez fosse uma pegadinha daqueles programas de auditório dominicais. Mal ouvia a mulher e as crianças falarem, absorto em pensamentos e reflexões e estava a ponto de explodir em fúria e ultrajes quando se deteve nos retratos da parede. Todas as fotos, das mais antigas às mais recentes, eram com aquelas pessoas e não com as que ele julgava ser sua família. Deus, estava enlouquecendo!

“Síndrome Pós-COVID. Sim, sim.”, pensou coçando a cabeça. Há um sem número de sintomas que as pessoas estão desenvolvendo após contrair a doença – de queda de cabelos até os mais esdrúxulos e inconcebíveis. Foi aí que se lembrou de ter se desvencilhado de uma cigana em frente a igreja matriz, no dia anterior, a qual deixara estrugindo impropérios que ele mal podia compreender. Será?

Sentou-se, finalmente, à mesa, calado e pensativo, degustando o bolo de banana, especialidade da esposa, a mesma que era incapaz de reconhecer e ao mesmo tempo, tão familiar.

– O que houve com você hoje? Está tão quieto… – perguntou, preocupada, não sem esboçar um eco dolente de ciúmes, por achar que ele pudesse estar pensando em outra mulher – o que de fato era verdade. Sentia os olhos marejarem, num desespero crescente de quem encara o desconhecido e este o mira de volta.

– Eu… eu tive um sonho estranho hoje. Sonhei que vocês não eram vocês.

– Hã?

– Então… eram vocês, mas sem serem vocês, me entendem? Como se vocês fossem os personagens da minha história, mas interpretados por outros atores. Conseguiram me entender?

– Bizarro, não é? – comentou o mais velho. – Melhor parar de beber, pai. – concluiu em troça da maneira mais natural e habitual possível. O mais novo limitou-se a rir, dando pouca importância ao relato do sonho, igualmente espontâneo. “Puta que pariu”, pensou, num aturdimento cada vez maior, o coração batendo acelerado, a respiração rápida e curta, as mãos trêmulas.

– Bizarro não, louco. Seria preocupante se não fosse engraçado! – comentou a mulher antes de um elegante gole na xícara, movimento cadenciado e lento, corpo ereto na cadeira. Sim, sim. Era preocupante.

Passou o dia tentando se ocupar de outras coisas que não o fizessem refletir em demasia sobre situação tão irônica, e (por que não?) sarcástica, mas lhe era quase impossível. A mulher lhe perguntava o motivo de estar tão distante, acossava-o, tornava-se igualmente pensativa, mas ele tergiversava. Sentia-se estranho, impotente, estúpido. Não podia proclamar claramente o que acontecia. O que ela pensaria? Que estava louco ou buscando um pretexto qualquer para abandonar a casa. Talvez fosse o caso de buscar ajuda com um psicólogo, um padre, um pastor, um pai de santo. Até a tal cigana serviria.

Havia, porém, uma última esperança: se tudo começou ao acordar, quem sabe tudo não se resolvesse também na manhã seguinte? Nada. Dias, semanas, meses se passaram. As teorias sobre demência e maldição cigana caíram por terra. Estava mais inclinado a pensar em padrões mentais e sinapses, algum tipo de ilusão criada por ele mesmo. E se de fato, os outros eram e sempre foram daquela maneira? E se, no fim das contas, a diferença física não fosse apenas uma fantasia criada para superar algum trauma, a materialização de uma expectativa que ele moldou? Uma dessas patranhas da mente que reptam a sanidade?

O problema não era os outros, mas ele mesmo. A frustração ou surpresa é o resultado da expectativa que se faz do objeto e não o que de fato é. Entretanto, ele jamais chegou a descobrir isso, porque dia após dia, encarando a própria face no espelho, também ele não se reconhecia mais.


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